O enfrentamento da violência contra as mulheres também exige um olhar voltado para a diversidade. A Lei Maria da Penha foi a primeira legislação brasileira a reconhecer os casais homoafetivos, em 2006. No último ano, ela também passou a contemplar as mulheres trans. A Lei do Feminicídio prevê que, independentemente do sexo biológico ou orientação sexual, casos de mulheres assassinadas pelo fato de serem mulheres, entrem na estatística. No entanto, ativistas admitem ao Correio dificuldades na aplicação dessas legislações.
“A questão trans dentro da violência contra mulher tem dois aspectos. Nós temos a violência doméstica, do parceiro que acaba agredindo uma mulher trans, e temos a questão da transfobia, que é um ato de agressividade, um ato de ceifamento por você existir, por você ser quem você é”, explica Vyvian Ribeiro, 33 anos, gerente de Plano de Trabalho e Ação da Subsecretaria das Mulheres do Distrito Federal, mulher trans e mãe adotiva.
Ela considera assustador que o Brasil figure como o país que mais mata transexuais no mundo pelo 14º ano consecutivo, de acordo com o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Somente em 2022 foram 131 pessoas trans assassinadas. A Lei de Feminicídio, de 2015, inclui as mulheres trans nos casos de violência em seu texto. No entanto, a prática nem sempre segue o ideal.
“Ainda contribuímos muito para uma estatística heteronormativa”, afirma Vyvian. Isso porque há grande dificuldade de reconhecer mulheres trans como mulheres. Muitas vezes, elas acabam sendo definidas e entrando em estatísticas diferentes, por ser considerado apenas o seu sexo biológico.
Por outro lado, a Lei Maria da Penha, que se destina a prevenir e punir as violências doméstica e familiar, somente incluiu as mulheres trans no ano passado, após decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). “Essa lei prevê a proteção à vida de todas as formas de violência contra a mulher nas relações humanas, nas relações afetivas, ela considera vários arranjos familiares”, assegura a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que trabalha com a temática social desde o primeiro mandato, em 2003, e criou ementa à Lei Maria da Penha durante a pandemia — em que os serviços de combate à violência doméstica foram considerados essenciais. Para a parlamentar, não existe motivo para qualquer diferenciação de gênero na lei, pois a pretensão é proteger a mulher vítima de violência.
Reconhecimento
Um dos destaques da principal legislação de enfrentamento da violência contra as mulheres foi o reconhecimento de casais homoafetivos, uma vitória na comunidade lésbica. No entanto, também há dificuldades na aplicação. “Raramente dirão que é um casal; vão dizer que são amigas ou conhecidas”, comenta Lenne Evangelista, 56 anos, militante lésbica e indígena. “A violência entre lésbicas, principalmente entre casais, é muito silenciosa. Às vezes é um empurrão, é um xingamento, é uma coisa de ciúme — ‘não posta isso’, ‘não faz aquilo’, em redes sociais —, e aí está sendo uma violência psicológica”, diz Lenne.
De acordo com Melissa Navarro, 43 anos, integrante da associação Coturno de Vênus, um ponto dificulta muito a conscientização das mulheres lésbicas em relação à violência doméstica. “Não existem muitos dados sobre violência entre casais de lésbicas. E aí tem essa questão das violências silenciadas, da reprodução das relações machistas dentro de um relacionamento entre mulheres”, explica. “Tem muita violência contra lésbicas nas relações familiares, pai e mãe que não aceitam e acabam podando algumas coisas, ou indo mesmo para o ato de violência.”
Mapeamento
A ativista conta que, no ano passado, a entidade em que ela atua realizou uma pesquisa para mapear o perfil das lésbicas no Brasil e tentar quantificar casos de violência. Entre os resultados, o estudo com mais de 21 mil mulheres, feito em parceria com a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), mostrou que 18% sofreram violência psicológica; 6%, violência física; 4%, violência sexual; e 2%, violência patrimonial. Ainda assim, segundo Melissa, o ideal seria que houvesse pesquisas como o Censo Demográfico, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ter números de violência contra as mulheres lésbicas e trans é essencial, pois trata-se de um dos critérios para se pensar em novas políticas públicas. “Abordar esse assunto com mais delicadeza é fundamental, e também levar informação de uma forma que seja bem explicada para a população. Muita gente vê uma coisa na televisão, em rede social, mas não entende”, acredita Vyvian. Neste ano, o Ministério das Mulheres, por exemplo, lançou uma campanha sobre o ódio de gênero, após dados do Atlas da Violência mostrarem crescimento em todas as formas de violência contra elas.
“Precisamos mobilizar a sociedade, as empresas, as entidades, as instituições e os governos para lutar contra o ódio às mulheres. Ele aumenta a violência sexual, física, de gênero e o feminicídio”, afirma a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. Ela também acredita ser necessário “ampliar o número de serviços” de atendimento a mulheres vítimas de violência. Um dos principais anúncios da pasta, nesse sentido, foi a ampliação da Casa da Mulher Brasileira em todo país, incluindo mais 40 unidades.
Acolhimento
“A Casa está aberta para atender todas as mulheres que sejam vítimas de violência e de vulnerabilidade, que tenham necessidade do nosso serviço”, afirma Cléia Souza, diretora da Casa da Mulher Brasileira (CMB) de Ceilândia. De acordo com ela, mais de 8 mil mulheres foram atendidas, e a procura por ajuda é diária. O local conta com alojamento, apoio psicossocial, atendimento de saúde e cursos de capacitação profissional. A CMB tem atendimento 24 horas e está disponível a todas mulheres.
Outra aliada é a Defensoria Pública da União (DPU), que presta assistência jurídica integral e gratuita. “Conforme dados do IBGE, as mulheres são mais suscetíveis a estarem em situação de pobreza, o que se aprofunda em lares com maior presença de crianças. Nesse cenário, as mulheres podem recorrer à DPU para auxílio na obtenção de benefícios assistenciais e previdenciários, que podem ser fundamentais para quebrar o ciclo de dependência econômica de um relacionamento abusivo”, explica Alessandra Woff, vice-presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef).
“Os marcos legais de proteção à mulher, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, apesar de importantes, não são suficientes. É necessário políticas públicas eficazes e atuação contundente das instituições”, acrescentou.
Por Correio Braziliense
Foto: Renata D’Aguiar / Reprodução Correio Braziliense