domingo, 1 de dezembro de 2024
publicidadepublicidade

Moradores de cidades vizinhas reclamam das dificuldades para ir e vir do DF

Quem mora no Entorno e precisa se deslocar diariamente ao DF lida com altas tarifas e perda de tempo

“Na minha cidade tem tudo, mas quando precisamos sair para trabalhar, em um emprego que pague um pouco melhor, o transporte é nossa maior dificuldade”. A fala é de Ossília Ribeiro, 45 anos, moradora de Planaltina de Goiás que, de segunda a sexta-feira, acorda às 4h rumo ao Lago Sul, onde trabalha como cuidadora de idosos. Assim como ela, quase 12 mil pessoas se deslocam durante a semana do município para o Distrito Federal, segundo números da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Nesta reportagem especial, o Correio foi a campo acompanhar moradores do Entorno que trabalham ou estudam no DF e dependem de transporte público para se deslocar. Entre as principais dificuldades, estão a baixa qualidade dos ônibus, a pouca quantidade de conduções e o alto preço das passagens, que impactam a qualidade de vida dos passageiros. Planaltina de Goiás, por exemplo, conta com apenas 69 veículos habilitados, da empresa Amazônia Inter Turismo — a única que roda no município — que fazem esse trajeto.

“Como o intervalo entre cada ônibus é muito longo, preciso sair mais cedo para pegar a linha das 4h30. Se sair mais tarde e deixar para pegar o próximo, chego atrasada no serviço, onde preciso estar às 8h”, explicou Ossília, em pé e com a mochila nas costas. Em um corredor estreito, fazer a viagem sentada não é uma possibilidade. E mesmo com cerca de 30 pessoas na mesma situação, ela garantiu: “Hoje (11/4), está até vazio. Tem vezes que a gente fica prensado (no suporte pega-mão) de tão apertado que é”.

A cuidadora de idosos sai do trabalho às 16h e, na Rodoviária do Plano Piloto, espera cerca de 40 minutos para embarcar, dessa vez, sentada. Conforme relatou, a empresa oferece a opção dos passageiros pegarem a linha executiva, que é mais confortável, porém custa R$ 15. 

Passagens caras

Em fevereiro deste ano, a ANTT aprovou — pela terceira vez em pouco mais de um ano — um reajuste de 8,5% das passagens entre Entorno e DF. A tarifa de Planaltina de Goiás para Brasília, que até agosto de 2023 custava R$ 10,15, está em R$ 11,05. Para Ossília, o gasto mensal é de R$ 626, visto que, chegando na Rodoviária do Plano Piloto, ainda precisa pegar um circular até o Lago Sul. “Por sorte, meu emprego arca com o vale-transporte, mas já perdi muitas oportunidades de ser contratada por causa da passagem. Meu esposo até já foi demitido por isso”, contou.

Mesmo com casa própria no Entorno, ela cogita mudar-se para o DF. No momento, o maior empecilho é o alto preço das moradias em Planaltina e Sobradinho, opções que considera. “Com tantos aumentos na passagem, passei a aceitar somente empregos que arquem com esse valor. É uma tarifa tão cara que, por mês, poderia pagar uma compra no mercado, um boleto ou um curso”, lamentou. E, para a cuidadora de idosos, o valor da passagem não corresponde à qualidade dos serviços. “Quebra com frequência, às vezes mais de uma vez por percurso”. Na última terça-feira (9/4), a reportagem flagrou três ônibus da empresa parados na BR 020.

Ao Correio, a ANTT informou que não há norma específica que estabeleça, nesse serviço semiurbano entre GO e DF, a idade da frota a ser utilizada, tempo médio de utilização dos veículos e sua renovação. “Cada sistema deve ser analisado de maneira específica para se determinar tais critérios, presentes nos editais de licitação e consequentes contratos de permissão. Vale lembrar que as empresas têm a liberdade de adquirir novos veículos conforme necessário, enquanto a Agência realiza fiscalizações constantes para garantir que estas cumpram as exigências regulamentares e que os veículos estejam em condições de uso”, disse a nota.

Usuários exaustos

Imagine uma rotina em que você precisa acordar às 4h30 da madrugada, escovar os dentes, tomar banho e comer, dentro de poucos minutos, para ir à garagem de ônibus, o mais rápido possível e enfrentar uma longa fila na esperança de conseguir viajar sentado em um assento ou, ao menos, em um dos degraus da porta. Esse é apenas o início do dia de Ricardo Machado, 30, morador da Cidade Ocidental, localizada a 48 km de Brasília. O Correio acompanhou Ricardo na ida ao estágio e ele estava tão cansado que foi encontrado dormindo pela reportagem. 

Pela manhã, Ricardo estagia na Asa Norte e, para chegar ao trabalho no horário combinado, às 8h, sai de casa às 5h30 e pega o ônibus por volta de 6h. O motivo de acordar tão cedo, além da tentativa (muitas vezes falha) de ir sentado durante a viagem, é evitar o engarrafamento. Mesmo madrugando, o universitário raramente inicia o expediente no horário estipulado pela empresa. “Ultimamente eu tenho chegado por volta das 9h, mas já aconteceu de eu chegar às 10h”, relatou. Apesar dos esforços, os atrasos geram reclamações e os supervisores já pediram, inclusive, para que ele saia de casa mais cedo.

À mercê do transporte público, o estudante de ciências da computação sai do estágio às 14h e segue para a faculdade, quase cinco horas antes das aulas começarem. Isso porque, em vista do cansaço e do preço da tarifa (R$ 8,45), não compensa voltar para casa. “Eu levo meu almoço para o trabalho, como, e depois vou para a faculdade estudar as matérias que os professores já passaram, para poder pelo menos aproveitar o tempo que, de certa forma, está sendo perdido”, desabafou.

As aulas de Ricardo terminam por volta de 21h50 e, até conseguir pegar o circular para a Rodoviária, espera meia hora. “Passam muitos circulares nesse horário, mas, como sai muita gente da faculdade, os ônibus são tão lotados que nem dá para entrar”. Chegando ao terminal, o universitário desce do ônibus correndo, literalmente, para conseguir embarcar para casa. Se perder a condução, que sai às 22h30, tem de permanecer na rodoviária até às 23 horas, horário em que a próxima linha sai. “A felicidade é quando o professor fala que vai liberar mais cedo”, brincou.

Quando o jovem chega em casa, já é quase meia noite. Por não ter condições de comer fora todos os dias, faz pequenos lanches ao longo da tarde e janta somente antes de dormir. “Quando chego ainda vou jantar, tomar banho e organizar as coisas para o outro dia, então, até conseguir dormir, já é mais de 00h30. Tenho quatro horas de sono e, assim, acordo cansado”, desabafou Ricardo, que relatou sentir que a dependência no transporte público afeta diretamente o seu desempenho ao longo do dia.

No caso de Ossília, o tempo de espera do ônibus, a longa distância e os engarrafamentos, fazem com que ela chegue em casa às 20h. Quando tem sorte, consegue dormir no máximo cinco horas por noite, mas dorme mal. “Normalmente as pessoas conseguem dormir quando estão cansadas, eu não. Tenho tomado até chá pra tentar melhorar o sono”. As preocupações com o marido, que trabalha como garçom no Plano Piloto e chega em casa às 2h, contribuem para a insônia. “Até ele chegar, praticamente não consigo pegar no sono. E aí me sobram só mais duas horas até que o despertador toque novamente”, lamentou.

Questionada sobre o que faria se recuperasse as horas gastas em ônibus, ela não teve dúvidas. “Bom, conseguir dormir mais já seria muito bom”, contou. Na linha 1073, quem estava sentado, dormia; quem estava em pé, também. “Cansaço, não é?”, concluiu. Na 411 Norte, a passageira, enfim, conseguiu sentar. “Vou aproveitar os poucos minutos de descanso”. Quando chegou na rodoviária, às 6h10, o dia ainda amanhecia e, apressada, Ossília se despediu. “Deixa eu correr que ainda preciso pegar o circular”.

Exposta ao risco

A empregada doméstica Flaviana Farias dos Santos, 41, mora no bairro Friburgo, também na Cidade Ocidental, há 12 anos. Quatro vezes na semana, sai do Entorno para trabalhar em uma casa no Lago Sul, e no dia que resta, a viagem é ainda mais cansativa: pega quatro ônibus, dois para ir e dois para voltar do Lago Norte.

Para bater o ponto do trabalho no horário certo, Flaviana acorda às 3h20 e, sozinha, na penumbra da madrugada, anda por pouco mais de 25 minutos até chegar no ponto de ônibus. A casa onde a trabalhadora mora fica localizada no final do bairro e o transporte público não passa em sua quadra. Apesar de ter pontos um pouco mais próximos, Flaviana prefere caminhar por mais tempo para conseguir sentar e dormir durante a viagem que, por mais que não pegue engarrafamento, dura quase duas horas.

À reportagem, a doméstica disse que é privilegiada, pois tem chefes compreensivos que, além de custearem o vale transporte de forma integral, oferecem uma quantia mensalmente para que ela pegue mototáxi até a parada. “O grande problema é que no horário que eu vou nunca tem mototáxi, então só consigo pegar na volta para a casa”, contou Flaviana, completando que os chefes fazem questão de minutos, então sai de casa bem cedo para evitar atrasos e não ter que pagar as horas depois. 

Na volta, o transtorno é ainda maior. Apesar de sair cedo do trabalho, por volta de 15h30, Flaviana chega em casa quase 18h. “Eu saio cedo, mas eu não chego cedo. No horário que eu saio não tem engarrafamento, mas também não tem ônibus, eu passo mais de 30 minutos na parada”. A trabalhadora desabafou que o ônibus para em todas as paradas e que a superlotação faz com que muitos passageiros fiquem para trás.

Impactos

Por dia, Ossília gasta seis horas dentro de ônibus; Ricardo, quatro horas e meia. Por mês, considerando os dias úteis, são 132 horas para ela e 99 horas para ele. Tanto tempo destinado ao transporte público pode gerar impactos significativos na saúde mental, conforme alertou Juliana Gebrim, psicóloga pela Universidade de Brasília (UnB) e neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal (Ipaf).

“Essa longa jornada pode causar estresse, ansiedade e até mesmo sintomas de depressão, devido ao desconforto físico, à sensação de perda de controle sobre o próprio tempo e às condições, muitas vezes, precárias do transporte público”, explicou. A especialista salientou, ainda, que a monotonia e a repetição diária desse processo podem contribuir para um sentimento de desesperança e insatisfação, afetando negativamente a qualidade de vida geral.

No que tange à privação de sono, Juliana destaca que, a curto prazo, a privação de sono pode manifestar-se através de irritabilidade, dificuldade de concentração e sensação de falta de controle sobre as emoções. Esses sintomas podem interferir na capacidade de desempenhar efetivamente o trabalho e de manter relacionamentos saudáveis. A longo prazo, pode aumentar o risco de desenvolver problemas mais graves, como depressão e ansiedade. “O declínio cognitivo associado à privação de sono prolongada pode comprometer a capacidade de processar informações, tomar decisões e lembrar-se de detalhes importantes”, completou.

Pastor Willy Taco, professor do departamento de engenharia civil e ambiental e coordenador do observatório da mobilidade urbana MOB3S, da UnB, explicou que os indivíduos que enfrentam uma rotina assim acabam sofrendo grandes perdas, tanto no quesito individual quanto no âmbito familiar. “Se formos falar de tempo perdido, menos duas horas indo e duas horas voltando equivale a quatro horas no dia, ou seja, praticamente as aulas de um aluno da universidade. Em cinco anos, as quatros horas diárias equivaleriam a duas pós-graduações”, completou o professor.

Números

22.600 passageiros são transportados por dia útil da Cidade Ocidental para o DF

390 viagens, por dia útil, são feitas da Cidade Ocidental para o DF

11.700 passageiros são transportados por dia útil de Planaltina de Goiás para o DF

250 viagens, por dia útil, são feitas de Planaltina de Goiás para o DF

Os horários de pico em ambos os municípios são das 4h às 7h e 19h das 16h às 19h

Por Letícia Guedes e Letícia Mouhamad do Correio Braziliense

Foto: Kayo Magalhães/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense

Posts relacionados