Por Jorge Henrique Cartaxo — jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHG-DF; e Lenora Barbo — arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHG-DF.
“Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança no seu grande destino”, registrou Juscelino Kubitschek, em 2 de outubro de 1956, na sua primeira visita ao sítio, no Planalto Central, onde seria construída Brasília. A manifestação inaugural parece óbvia quando nos referimos ao papel da capital de um país, pelo menos desde o século XVII. Mas não foi sempre assim e esse percurso civilizatório merece um certo olhar, até para tentarmos entender exatamente porque temos uma capital e essa capital é Brasília.
No início era a aldeia. Clãs e parentescos, em pequeno número, aglomerados em alguma região, não necessariamente isolados, mas equidistantes, observando seus costumes, ritos e valores. A comunidade a serviço dos deuses! Os lugares sagrados, entretanto, não ficavam na aldeia. Não raro, eram em cavernas ou sítios específicos envoltos em lembranças, mitos e memórias. Para esse lugar, de acordo com o calendário de cada povo e região, acorriam os clãs e suas aldeias, para cerimônias e celebrações. Foi esse ponto de encontro permanente que criou as cidades, unindo povos de regiões distintas. Na Grécia arcaica, Clístenes — considerado o pai da democracia ateniense — convocou os homens das colinas, das planícies e da costa para redesenhar o mapa da Ática, dividindo-a entres 10 tribos compostas por homens e mulheres de todas as regiões. Veio o mundo Helênico, a Mesopotâmia, a Pérsia, o Egito, Roma, Constantinopla, o cristianismo, a Idade Média e a Europa.
O fim da Idade Média foi marcado pela queda de Constantinopla (1453), a reforma luterana (1517), pela expansão do mercantilismo e das grandes navegações (1492), a invenção da imprensa de Gutemberg (1439/40), o movimento Barroco (1550/1750) e a urgência do Estado Moderno, com o absolutismo. A Europa moderna é, portanto, um conjunto de Estados em busca de um equilíbrio de forças políticas e econômicas. A decisão institucional para constituição dos estados nacionais, no século XVII, foi a monarquia absolutista, com as definições das suas respectivas capitais.
A nova centralização do poder, de certa forma, exige o predomínio de uma cidade que abrigue e simbolize a autoridade do Estado, o poder militar, os órgãos da administração pública, as representações diplomáticas que regulam as relações entre os Estados. A cidade murada medieval dá lugar à cidade-capital monumental, contemplativa e com o olhar para a cultura e a fruição do saber. Não por acaso é Roma que oferece o primeiro modelo de cidade com uma representatividade ideológica do mundo moderno em construção. Em meados do século XV, passado o Grande Cisma (1378/1417), reafirmando a prioridade histórica da Igreja, Nicolau V prepara-se para restaurar o papado, dando a ele o embelezamento e as instituições próprias de um estado temporal. E é o seu prestígio histórico e moral que vai se sobrepor ao dinheiro e às armas. Logo vieram Versalhes, que nunca substituiu Paris, mas foi a sede da monarquia francesa de 1682 até a 1789; São Petersburgo, fundada em 1703, foi capital da Rússia por dois séculos; Madrid — que era uma fortaleza moura — foi declarada capital da Espanha pelo rei Filipe II, em 1561; Potsdam, ao lado de Berlim, sede da residência oficial dos reis da Prússia desde 1730… e muitas outras capitais, agora com suas atribuições de comando, foram definidas e redefinidas na Europa.
No caso do continente americano, na particularidade de ex-colônias, o desafio da definição das capitais, tanto as nacionais como as regionais, guardam seus debates. São notáveis os caminhos do Brasil, Canadá e Estados Unidos. No Canadá, após a adoção da Lei da União em 1840, uma disputa entre Kingston, Toronto e Quebec, não raro violenta, é pacificada, em 1857, pela escolha de Otawa. Nos Estados Unidos, a polêmica não é menor. Entre 1776, data da independência, até a construção de Washington, em 1800, os americanos se embaralharam com nada menos do que nove capitais (Philadelphia, Baltimore, Lancaster, York, Princeton, Annapolis, Trenton, Nova York e Washington).
Salvador, fundada em 1549, foi a nossa primeira capital, por ordem do rei, observando a posição geograficamente conveniente da cidade. No século XVIII, dois fatores, entre outros, deslocam, geopoliticamente, a capital colonial: a exploração do ouro em Minas Gerais e a criação, em 1737, do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que cobre toda a região amazônica. O Rio de Janeiro se mostra mais adequado para abrigar o centro administrativo e militar da colônia. A vinda da Corte, em 1808, confirma a cidade do Rio de Janeiro como capital, ainda que com reservas e ponderações. De Londres, Hipólito José da Costa defendia a edificação de uma capital no Planalto Central do Brasil. O debate sobre a necessidade de uma nova capital é retomado na Independência, por José Bonifácio, e se define na primeira Constituição Republicana. Mas o grande momento da mudança da capital, da construção de Brasília, da grande presença das lideranças de Goiás em todo o processo, se dá mesmo na Constituinte de 1946 até a elaboração do relatório do marechal José Pessoa, em 1955, e do seu encontro com o governador Juca Ludovico, numa madrugada em Goiânia, poucos dias após o histórico discurso de JK em Jataí. Mas, o nosso caminho, de Salvador, na colônia, ao Rio de Janeiro com Dom João VI, até Brasília com JK merece outros textos e novas palavras.
Por Correio Braziliense
Foto: Caio Gomez / Reprodução Correio Braziliense