Alguns se escondem no silêncio dos quartos fechados, nos olhares assustados à mesa de jantar, no aperto no peito que ninguém vê. Para quem cresceu vendo a própria mãe sofrer violência, seja física, psicológica ou emocional, a infância e a adolescência ganham cicatrizes profundas. Marcas difíceis de nomear. Ainda mais difíceis de curar.
“Desde pequena, percebia que meu pai tinha momentos aleatórios de agressividade e isso sempre me assustava muito, porque eu não entendia o que estava acontecendo”, conta Daniele Morais (nome fictício), 29 anos, servidora pública. Até hoje, ela carrega as dores e os traumas de ter assistido, em silêncio, à mãe sendo agredida verbalmente.
Daniele lembra que, às vezes, tudo parecia tranquilo. Os pais agiam como um casal comum, havia momentos de paz. Mas bastava chegar em casa para ouvir gritos, ameaças. “Eu me sentia confusa. Nunca vi meu pai bater na minha mãe, mas a violência verbal e psicológica era constante”, relata.
O clima de tensão permanente moldou sua forma de amar e de se relacionar. “Sempre tive dúvidas se realmente gostavam de mim. Desenvolvi hipervigilância, que mais tarde foi diagnosticada por um psiquiatra. Eu vivia em estado de alerta, sempre esperando o pior, como se algo ruim fosse acontecer a qualquer momento. A terapia e o apoio de pessoas de confiança foram essenciais para eu começar a me reconstruir”, afirma.
Dados da plataforma DataJud, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostram que, no ano passado, 27.603 processos relacionados à violência doméstica contra mulheres foram protocolados no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). São, em média, 75 novos casos por dia.
Marcas profundas
O impacto psicológico de crescer em um lar violento é profundo e quase sempre silencioso. Muitos filhos e filhas desenvolvem ansiedade crônica, depressão, transtornos de pânico. Têm dificuldade para confiar, para construir relações saudáveis. A noção de amor se mistura ao medo. E a sensação de segurança se esvai.
Fabricio Castro (nome fictício), 23, também cresceu em um lar onde o afeto era substituído por brigas, vícios e agressões. “Meu pai batia na minha mãe e ela revidava. Eu era só uma criança e não entendia nada. Tentava entrar no meio para separar, mas nunca adiantava”, lembra.
As brigas, motivadas por ciúmes e descontrole emocional, deixaram marcas profundas. “As palavras machucavam tanto quanto os tapas. Fui uma criança agressiva, ansiosa, cheia de crises existenciais. Só anos depois, com muito autoconhecimento e terapia, percebi o quanto isso afetou meus relacionamentos e minha forma de viver”, desabafa.
Hoje, ele se sente mais forte. “Tudo foi muito dolorido, mas não desisti da minha história. Tenho orgulho de ter quebrado um ciclo que marcou gerações da minha família.”
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF), em 2023 foram registrados 19.996 casos de violência doméstica no DF. No ano passado, o número subiu para 20.867 — um aumento de 4,4%. A maioria das ocorrências se concentra nos fins de semana (36%) e no período noturno (das 18h às 23h59).
Lucilene dos Santos, 49, cuidadora de idosos, carrega a culpa por ter sofrido agressões na frente das filhas, de 13 e 15 anos. “Tudo começou com xingamentos em público. Depois, vieram as agressões físicas. Minhas filhas, que são de outro casamento, desenvolveram traumas por causa dele.”
Ela enxerga nas meninas os reflexos da violência que presenciaram. “Não saem de casa, desconfiam de tudo e de todos. Acham que todos os homens vão agir como ele. Até as notas da escola caíram.”
Vítimas secundárias
A psicóloga Kênia Ramos explica que presenciar violência doméstica é profundamente traumático para crianças e adolescentes, mesmo quando não são as vítimas diretas.”Os principais efeitos incluem ansiedade, medo constante, dificuldade de concentração, baixa autoestima, distúrbios do sono, irritabilidade e transtornos de estresse pós-traumático. Muitas crianças voltam a ter comportamentos infantis, como fazer xixi na cama, e crescem com dificuldade de confiar nas pessoas”, afirma.
A longo prazo, os danos são ainda mais profundos. “Essas vivências interferem na construção da identidade, nas relações afetivas e na capacidade de se autorregular emocionalmente. Muitas acabam repetindo os padrões abusivos que testemunharam, seja como vítimas, seja como agressores.”
Ela ressalta que crianças que convivem com a violência são vítimas secundárias, mas com danos emocionais tão graves quanto aqueles que sofrem agressões físicas. “Viver em um ambiente onde o medo é constante já configura um trauma. O psicológico dessas crianças cresce em estado de alerta.”
Por isso, o acompanhamento psicológico é essencial. “É na terapia que essas crianças e adolescentes encontram um espaço seguro para expressar o que sentem, desenvolver autoestima e aprender a romper com o ciclo da violência. O trabalho precisa envolver também a rede de proteção e apoio, garantindo segurança e escuta ativa.”
Políticas e prevenção
Para tentar enfrentar essa realidade, o Distrito Federal conta com programas voltados à prevenção da violência doméstica. Um deles é o Segurança Integral, da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF), que reúne diferentes órgãos e a sociedade civil para promover direitos humanos e reduzir os índices de violência. A pasta reforça que a maioria dos crimes ocorre dentro de casa e que a denúncia é a principal ferramenta para quebrar esse ciclo.
Para casos envolvendo crianças e adolescentes, o DF conta com a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), no Departamento de Polícia Especializada (DPE). A DPCA atua por meio de um protocolo criado em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), validado em pesquisa científica, para o depoimento especial de crianças e adolescentes. Com a instituição da Lei 13.491, em 2018, esses depoimentos parassaram a acompanhados por profissionais capacitados, em ambiente adequado, dentro da DPCA.
Outro programa é o Provid, da Polícia Militar do DF, que atua na prevenção de novos episódios de violência. O diferencial está no atendimento humanizado e no cuidado especial com crianças e adolescentes, garantindo que eles não sejam revitimizados no processo.
Canais de denúncia
A Polícia Civil (PCDF) disponibiliza quatro canais de atendimento para registro de ocorrências:
– Denúncia on-line: https://is.gd/obhveF;
– E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br;
– Telefone: 197, opção 0;
– WhatsApp: (61) 98626-1197.
Em caso de emergência, a Polícia Militar (PMDF) está disponível pelo número 190.
O que diz a lei
A Lei nº 11.340/2006, chamada Lei Maria da Penha, define violência doméstica ou familiar como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Caio Gomez