O Distrito Federal é a 10ª unidade da federação com o maior número de transplantes de órgãos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Ainda assim, o drama de quem está na fila é agravado pelo fato de o ritmo dos procedimentos não acompanhar o crescimento da demanda. Para piorar, a quantidade de cirurgias nos últimos três anos está estagnada.
A fila de espera até agosto deste ano tem 1.733 pacientes, superando os 1.698 de 2024 inteiro. Também nesses oito primeiros meses de 2025, somente 573 transplantes foram realizados, número ligeiramente maior que no mesmo período do ano passado e em 2023 (veja arte). Só quem viveu a angústia de esperar por um órgão sabe a conquista que é realizar o transplante. Para muitos, é um renascimento.
Foi assim com o servidor público Leonardo Arantes, 35 anos, que, até receber um novo fígado, em 2023, tinha apenas 3% de chance de sobreviver a uma grave hepatite autoimune, diagnosticada ainda na infância. Embora tenha mantido um quadro relativamente estável na adolescência e juventude, o fígado passou a dar sinais de deterioração, em meados de 2021, evoluindo para uma cirrose hepática. Dois anos depois, ele entrou para a fila de transplante.
“Mesmo sabendo se tratar de uma doença grave, ninguém está preparado para receber a notícia de que precisará fazer um transplante. Foi uma tristeza imensa no início”, conta Leonardo. Em poucos meses, a saúde do servidor sofreu mais um baque, com o diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea, uma infecção da cavidade abdominal. Foram 90 dias internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e mais 14 dias no quarto.
Diante da gravidade do caso, a realização do transplante de fígado se tornou urgente e ocorreu em 31 de março de 2023. Durante a internação, ele sofreu complicações severas, foi entubado e chegou a ter o coração reanimado após episódios de parada cardíaca. Leonardo também passou por traqueostomia e perdeu quase 30 quilos. Seus rins pararam de funcionar, e foram necessárias várias sessões de hemodiálise. Apesar disso, a cirurgia foi um sucesso.
“Digo que a vitória ocorreu por etapas, porque eu sempre mirava em um objetivo específico. Primeiro, poder ficar de pé, depois dar uma volta pelo quarto, recuperar a voz e assim por diante. O apoio familiar, a fé e as minhas muitas orações foram fundamentais para superar esses desafios. Tenho certeza de que vivi um milagre. Ganhei uma nova vida”, conta o paciente, que, dois anos e meio após o transplante, está curado e leva uma rotina normal.
Sobrevivência
O fígado é o segundo órgão mais aguardado por quem está na lista de espera no Brasil, com 2.305 indivíduos na fila, atrás somente do rim, conforme dados do Ministério da Saúde. No DF, até agosto deste ano, foram 101 procedimentos que garantiram um novo fígado a esse público. Atualmente, 24 pessoas esperam pelo órgão na capital do país.
Segundo o médico André Watanabe, coordenador de transplante de fígado do Hospital Brasília, da Rede Américas, diferentemente do que a maioria das pessoas pensa, a cirrose hepática — doença hepática em fase terminal — não é causada apenas pelo uso abusivo de bebida alcoólica, mas, também, por problemas como deposição de gordura no fígado, hepatites B e C, diabetes e hipertensão.
“O fígado é um órgão que possui funções múltiplas e essenciais à vida humana. Então, à medida que entra em falência, vários outros problemas surgem, como acúmulo de líquido no abdome, piora da função do rim, encefalopatia (quando o paciente começa a apresentar alterações neurológicas) e quadros infecciosos”, detalha Watanabe.
No caso de Leonardo, o transplante foi responsável por devolver-lhe a vida. “Na condição que ele estava, se a doação levasse um pouco mais de tempo, ele não sobreviveria. E, caso o procedimento não ocorresse, a mortalidade em três meses era de praticamente de 100%. Com um bom acompanhamento médico e uso correto das medicações após o transplante, esses pacientes podem levar uma vida praticamente normal”, completa o especialista.
Compatibilidade
Vinte e quatro de novembro se tornou, para Robson de Jesus, 53, uma data de comemoração. Foi nesse dia, em 2023, que o analista de TI recebeu um rim, única saída para manter a qualidade de vida após o diagnóstico, em exames de rotina, da doença de Berger — síndrome autoimune que causa inflamação e danos aos filtros renais — em estágio avançado. A doadora do órgão foi a própria irmã, Maria Carolina de Jesus, 48.
“Somos os irmãos mais parecidos da família e sempre tivemos uma relação muito boa. A compatibilidade foi certeira. Não tenho como mensurar minha gratidão”, diz Robson. A cirurgia, ocorrida no Hospital Anchieta Taguatinga, significou um renascimento. O doador renal é criteriosamente avaliado com exames laboratoriais, avaliação psicológica, estímulo à alimentação saudável e atividades físicas. Também deve cessar hábitos como tabagismo e etilismo.
Segundo Helen Siqueira, coordenadora do serviço de nefrologia do hospital, todo processo de transplante tem início nos hospitais, quando há a confirmação da morte encefálica e a notificação à comissão intra-hospitalar de doação. “Com a autorização da família, um único doador pode salvar até oito pessoas e beneficiar dezenas com tecidos”, destaca.
Apesar de qualquer pessoa maior de 18 anos poder ser doadora em vida ou após a morte, a nefrologista reforça que a decisão precisa ser comunicada aos familiares, visto que a autorização final parte deles. Ela também esclarece receios comuns: a retirada de órgãos é feita em centro cirúrgico, com todo respeito, sem desfigurar o corpo, permitindo velório aberto, se assim a família desejar.
“Histórias como a de Robson revelam o impacto profundo do transplante, que devolve autonomia e permite ao paciente deixar a diálise e retomar sua rotina. É uma mudança emocionante para o receptor e para toda a família”, resume a médica. “Graças à doação da minha irmã, hoje tenho qualidade de vida. Voltei a trabalhar e consigo viver normalmente. Ela (Maria Carolina) também segue bem, com saúde plena”, comemora o analista.
Atualmente, 43.867 pessoas aguardam por um transplante de rim no Brasil; no DF, são 929, segundo a Secretaria de Saúde (SES-DF). A maioria dos que aguardam pelo órgão são homens na faixa dos 50 a 64 anos. “As principais doenças e comorbidades que podem levar à necessidade de um transplante de rim são os problemas hereditários, autoimunes e glomerulares, além de hipertensão arterial e diabetes”, pontua Helen.
Como ser um doador
Segundo o Ministério da Saúde, para ser doador de órgãos no Brasil, basta comunicar a decisão à família, visto que apenas os familiares podem autorizar a doação em caso de morte encefálica. Para uma formalização da intenção ou para aqueles que ainda em vida decidem doar, é possível registrar uma manifestação eletrônica por meio site www.aedo.org.br ou do aplicativo AEDO, que permite a seleção dos órgãos desejados.
Além da formalização do desejo de doar, é necessário que doadores vivos tenham mais de 18 anos, gozem de boa saúde e passem por uma avaliação médica para verificar a compatibilidade e garantir que a doação não prejudicará sua saúde. A Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO) já soma mais de 458 solicitações emitidas em todo o DF, fortalecendo a política pública de transplantes no Brasil.
“Ponte aérea entre o direito de viver e a possibilidade de recomeçar”
O transporte de órgãos envolve uma complexa e sincronizada cadeia de eventos, na qual todos os entes envolvidos no processo — como Corpo de Bombeiros, Departamento de Trânsito (Detran) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) — precisam estar devidamente coordenados. Agilidade, segurança e previsibilidade são fatores indispensáveis durante essa integração, cuja finalidade é promover saúde e otimizar os recursos logísticos do Estado.
Foi assim em 5 de agosto deste ano, quando o Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF) foi acionado pela Central de Transplantes para o transporte de um coração captado na cidade de Dourados (MS), em direção ao Instituto de Cardiologia e Transplantes do DF (ICTDF). A operação foi um sucesso.
“A janela temporal que garante a viabilidade de cada órgão é limitada. Atrasos ou falhas operacionais impactam diretamente no sucesso da operação. É enorme o impacto social direto de cada transporte bem-sucedido, pois isso representa vidas salvas e dar qualidade de vida, motivos de grande realização profissional para nossas tripulações”, ressalta o Major Walmir Oliveira, do Corpo de Bombeiros (CBMDF)
Em 10 anos, a parceria entre o Detran e a SES-DF resultou no transporte de 90 órgãos, sendo 77 corações, seis fígados, um rim e seis córneas. Em 2024, o departamento bateu o recorde de transportes, totalizando 21 corações e dois fígados.
“Cada operação bem-sucedida é a materialização de um esforço coletivo que transcende instituições, fronteiras e protocolos. É a reafirmação de que o Estado existe para servir, proteger e salvar. Esta cooperação não apenas conecta helicópteros a hospitais, mas corações a corações, famílias a futuros, e profissionais a propósitos. É, em sua essência, uma ponte aérea entre o direito de viver e a possibilidade de recomeçar”, declara o chefe da Unidade de Operação Aérea do Detran, Sérgio Dolghi, que, em suas missões, ajudou a transportar cerca de 45 órgãos.
“É muito gratificante saber que estamos ajudando a salvar vidas”, completa Dolghi. Em março deste ano, o Termo de Cooperação Técnica do Detran com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi finalizado, de forma que o acionamento prioritário para o transporte de órgãos foi direcionado ao CBMDF. Mesmo assim, segundo o chefe da Unidade de Operação Aérea, o departamento tem tentado viabilizar um novo termo.
Quem também viveu momentos de adrenalina horas antes de um transplante foram os agentes da PRF que conseguiram transportar uma paciente, moradora de Goiânia (GO), presa em um congestionamento na BR-060 até o ICTDF, onde ela pôde receber, a tempo, um fígado novo. O trajeto, que normalmente levaria mais de uma hora devido ao congestionamento, foi percorrido em 25 minutos.
“Nós a visitamos depois da cirurgia. Foi uma ocorrência muito especial para nós, porque não é algo comum. Mas, sempre que solicitada, nossa Divisão de Operações Aéreas atua tanto no transporte de paciente quanto de órgãos”, conta o agente Felipe Camarinha. (LM)
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Divulgação/Detran-DF