Um grupo com cerca de 100 homens se reúne num auditório em Milão, na Itália, em 23 de março de 1919. Composto principalmente por ex-soldados mutilados e desiludidos com a vida após a Primeira Guerra Mundial, o público explode em aplausos com o discurso inflamado de Benito Mussolini, que lhes promete reconhecimento e recompensas. Nascia ali a frente ultranacionalista chamada de Fasci Italiani di Combattimento — semente do que, dois anos depois, se firmaria como o Partido Fascista. Entorpecido pela aclamação, o líder do movimento desvia o olhar de seus seguidores e mira a câmera na série Mussolini: o Filho do Século, que chega à plataforma de streaming Mubi na quarta-feira 10, com episódios semanais, sendo oito no total. Encarando o espectador, ele diz, orgulhoso: “O fascismo conquistará milhões de corações. Até o seu. Siga-me. Você também me amará. Vou transformar você em um fascista”. A cena causa arrepios — como planejava Joe Wright, diretor da produção. “Mussolini acha que tem o controle da narrativa. Ele perde isso ao longo da série, assim como perdeu na vida real”, disse Wright em entrevista a VEJA.
Ao colocar Mussolini no protagonismo, a série explora as motivações do ditador, suas paixões, desvios de caráter, covardias, relações amorosas e medos, compondo um personagem complexo, mas, acima de tudo, humano e reconhecível em diversas camadas da sociedade — especialmente nos setores de poder político. Faz tudo isso, contudo, sem torná-lo objeto de empatia. “Acho perigoso demonizar homens como ele. Mussolini era um ser humano, o pior tipo entre nós”, reforça o diretor. A visão do cineasta inglês é a mesma do autor italiano Antonio Scurati, que assina a pentalogia sobre o líder fascista — a série adapta o primeiro livro da saga, M, o Filho do Século, que traça a juventude política do personagem, entre 1919 e 1925. Tema explosivo entre os italianos, Mussolini foi por décadas tratado como um desvio de rota da história do país e da humanidade. Mais recentemente, passou a ser visto com certa condescendência por uma parcela dos italianos que apoia a ascensão da extrema direita por lá — esta representada pela primeira-ministra Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia, partido de raízes neofascistas. Não à toa, ela e seu clã trocam farpas com Scurati, que teceu um amplo romance histórico baseado em fatos e narrado em primeira pessoa pelo ditador — três livros da série já chegaram ao Brasil pela editora Intrínseca, um quarto foi lançado na Itália e o quinto está sendo escrito.
Joe Wright foi uma escolha acertada para conduzir a série. A começar por seu distanciamento emocional da história da Itália, mas principalmente pela incontestável habilidade de transformar clássicos da literatura e tramas históricas em produções ágeis, modernas e de visual deslumbrante. Em seu currículo estão adaptações de obras como Anna Karenina, de Liev Tolstói, e o drama de guerra O Destino de uma Nação (2017), sobre os desafios enfrentados por Winston Churchill no ápice da Segunda Guerra.
Em O Filho do Século, Wright embala a narrativa, de forma surpreendente mas funcional, com a atmosfera vertiginosa das raves de música eletrônica e uma estética de filme de máfia. A trilha sonora de Tom Rowlands, do duo The Chemical Brothers, mantém a tensão à flor da pele. No set, Wright costuma tocar músicas no último volume para acertar o tom das atuações — aqui, a playlist ia de Black Sabbath a Elton John. Para viver Mussolini, o italiano Luca Marinelli ficou irreconhecível: engordou 20 quilos, raspou a cabeça e treinou para falar como o ditador. Antifascista, o ator quase não aceitou o papel, mas entendeu se tratar de uma missão nobre: a de renovar no mundo de hoje o sentimento de aversão ao autoritarismo.
Para tornar a série palatável, o uso do humor ácido foi essencial. A certa altura, o ditador diz que “fará a Itália grande novamente” (alô, Donald Trump). A série explora ainda ironias perversas da vida real, como a trajetória de Margherita Sarfatti: vivida por Barbara Chichiarelli, a artista, intelectual e jornalista judia que foi amante de Mussolini e o ajudou a chegar ao poder — para, em seguida, vê-lo voltar-se contra ela quando se aliou ao nazismo. A trama pincela o passado dele no Partido Socialista, de onde foi expulso; o trabalho como jornalista, que aprimorou sua oratória incisiva; e seu endosso à gangue paramilitar dos Camisas Negras. Para chegar ao Parlamento, explorou problemas e anseios legítimos do povo usando como tábua de salvação a ideia do homem forte e de soluções simples. “O fascismo é a politização da masculinidade tóxica”, diz Wright. Vazio de projetos políticos e de caráter, Mussolini passou vinte insólitos anos no poder. Foi assassinado em 1945, mas a semente do autoritarismo que ajudou a plantar segue viva. É preciso conhecer a gênese do mal para combatê-lo no futuro.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960
Por Revista Plano B
Fonte Veja
Foto: Andrea Pirrello/Sky/.