A tragédia que levou à morte de Sarah Raíssa Pereira, de 8 anos, chocou a todos e levantou a questão sobre a urgência em monitorar plataformas sociais e seus conteúdos. Em entrevista exclusiva ao Correio, a juíza substituta da 2ª Vara da Infância e Juventude do DF, Paula Afoncina Barros Ramalho, destaca a importância do tema e avalia a responsabilidade do Poder Público e da sociedade civil em episódios como o que vitimou a pequena Sarah. “As famílias precisam ser mais bem informadas sobre os riscos envolvidos em deixar crianças e adolescentes com acesso livre e sem qualquer supervisão à internet”, acrescenta.
Considerando o trágico caso da morte da menina de 8 anos, Sarah Raíssa Pereira, provavelmente devido ao chamado “desafio do desodorante”, uma prática que circula nas redes sociais e consiste em inalar aerossóis pelo maior tempo possível, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) iniciou a coleta de assinaturas para a criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), com o objetivo de investigar crimes cometidos contra crianças e adolescentes no ambiente digital. Diante desse contexto, a senhora acredita que a proposta da deputada pode contribuir de maneira efetiva para a redução das violências dessa natureza que afetam crianças e adolescentes no Brasil?
A instauração de CPI é uma providência que pode se revelar útil na busca pela adoção de medidas concretas que visem à prevenção e ao combate das diversas formas de violência praticadas contra crianças e adolescentes em ambientes virtuais. Após ouvir autoridades no assunto, colher dados, convocar eventuais responsáveis pelas plataformas e outros envolvidos, a CPI poderá propor encaminhamentos que resultem no aperfeiçoamento das políticas públicas relacionadas à moderação e monitoração das redes, à investigação e punição de responsáveis por conteúdos que envolvem induzimento e/ou instigação de crianças e adolescentes ao suicídio, à automutilação e a outros comportamentos nocivos, servindo, ainda como forma de mobilizar toda a sociedade e Poder Público para o enfretamento do tema.
Se a CPI for criada, acredita que esse movimento poderia exercer pressão para a regulação das plataformas digitais, visando aumentar a proteção de crianças e adolescentes?
Sim. A criação de uma CPI muitas vezes serve como instrumento capaz de mobilizar o Poder Público e a sociedade para temas que demandam ações urgentes, como é o caso do enfretamento da violência contra crianças e adolescentes em ambientes virtuais. A partir dessa mobilização, é possível que sejam apresentadas novas propostas legislativas ou que avancem as que já tramitam no Congresso em relação ao tema da regulação das redes sociais, especificamente no que concerne às ações de moderação de conteúdo e de prevenção de violência à criança e ao adolescente nos ambientes virtuais.
Quais são as políticas públicas atuais ou em discussão voltadas para combater esse tipo de violência contra nossas crianças e adolescentes? A Justiça está coordenando esforços com outras secretarias ou ministérios para enfrentar esse problema de maneira integrada?
O Poder Público tem desenvolvido algumas políticas públicas em eixos de prevenção e educação digital, que surgem como instrumentos relevantíssimos quando se pensa que, o que mais se deseja, é evitar que situações como que a vitimou a criança Sarah ocorram. A título de exemplo, recentemente o governo Federal lançou um documento intitulado “Crianças, adolescentes e Telas: guia sobre usos de Dispositivos de Digitais” (leia mais na página 14), que possui importantes recomendações direcionadas às famílias, às escolas, às plataformas de internet, aos influenciadores, etc, acerca de como garantir que haja um uso seguro das redes por esse público. Há, ainda, o Ciberlab, do Ministério da Justiça, que atua em ações de monitoração e prevenções dos chamados “crimes virtuais”, e que tem auxiliado na identificação de conteúdos potencialmente criminosos em plataformas como Discord e Telegram. Houve, a partir de relatórios produzidos no âmbito do Ministério da Justiça e reportados à Polícia Civil no DF, instauração de processo que posteriormente resultou na punição de responsável por comunidade no Discord, em que foram identificadas práticas de instigação e incentivo à automutilação de adolescentes e de compartilhamento de pornografia infantil.
E com relação à Justiça?
No que diz respeito ao Poder Judiciário, até mesmo pela própria natureza da função que exerce, a atuação se dá precipuamente no âmbito da apuração e responsabilização de eventuais autores de crime praticados contra as crianças e adolescentes, mediante o devido processo legal. Há, é claro, necessidade de aprimoramento e ampliação das ações, principalmente por meio da integração e atuação em rede, e do desenvolvimento de mecanismos mais efetivos de responsabilização das plataformas. É essencial, ainda, que haja maior divulgação das recomendações de segurança cibernética direcionada ao público infantojuvenil e um trabalho mais intenso de conscientização das famílias e de toda a sociedade acerca do assunto.
Observando o caso de Sarah e, ainda, considerando as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, pensar proteção e participação desses sujeitos na internet é um grande desafio. Como agir nesse sentido?
Esse é, de fato, um tema bastante complexo e delicado. A meu ver, e correndo o risco de parecer a um só tempo simplória e radical, a verdade é que a internet, definitivamente, não é um ambiente que possa ser seguramente acessado por crianças (pessoas menores de 12 anos). Isso porque, para além dos riscos ao desenvolvimento neurológico causados pelo uso excessivo de telas, há o risco concreto de expor a criança a influências perigosas de terceiros que com ela interagem pelas redes sociais e a conteúdos impróprios para a idade, já que é praticamente impossível conseguir um uso 100% supervisionado pelas famílias. Hoje em dia é comum que crianças tenham seus próprios smartphones, tablets com acesso à internet, mas, se bem compreendido o perigo que isso representa, as famílias deveriam seriamente repensar essa prática.
No caso de adolescentes (pessoas com mais de 12 anos e menos de 18 anos de idade), o acesso supervisionado às redes, com uso de instrumentos de controle parental, aliado a intenso diálogo principalmente no âmbito da família e da escola sobre os riscos envolvidos, são caminhos capazes de possibilitar um uso mais seguro por parte desse público. Paralelamente a isso, é urgente que as plataformas sociais sejam rigorosamente cobradas pelo Poder Público e por toda a sociedade civil para desenvolver mecanismos efetivos de verificação etária e para aperfeiçoar suas políticas de moderação de conteúdo, com imediata identificação e remoção de conteúdos nocivos (como esses “desafios” que circulam pelas redes sociais e que colocam a integridade e vida das pessoas em risco).
Como explicar e entender um fato absurdo como a morte da pequena Sarah? Quais os fatores que a senhora identifica para uma ação tão trágica da menina de apenas 8 anos?
Uma tragédia como a que vitimou a criança Sarah é difícil de ser compreendida e explicada, por todo o absurdo que envolve o ocorrido. É preciso, de antemão, compreender que, por mais que “os tempos hoje sejam outros” e que o acesso à informação seja mais democratizado, crianças, por sua própria natureza, não podem ser cobradas como pessoas capazes de compreender e dimensionar os riscos a que estão sujeitas ao interagirem com um determinado conteúdo nas redes. A infância e a adolescência são fases particularmente sensíveis do desenvolvimento humano em que a ânsia de experimentar situações novas e o desejo de pertencer ou de se mostrar capaz/corajoso perante um grupo ou uma plateia de “seguidores” na “vida real” ou nas redes podem levar a resultados catastróficos. De toda forma, tão importante quanto tentar entender, é direcionar o foco, a revolta e a perplexidade para a ação de quem (pessoa “de carne e osso” e também plataformas) produziu, disseminou e possibilitou que um conteúdo como o tal “desafio do desodorante” chegasse até uma criança como Sarah.
De quem é a responsabilidade? Uma família deve ser responsabilizada por não acompanhar as atividades das crianças na internet? Estado também pode ser responsabilizado?
Acredito que o ponto central da responsabilização, em casos como esse, deve ser em quem produziu o conteúdo nocivo e em quem permitiu o conteúdo circular nas redes e se tornar a acessível a pessoas que sequer tinham idade para ter perfil em rede social. Quanto às famílias (e falo aqui das famílias em geral, não da família que, lamentavelmente, sofreu a tragédia que é a perda de uma filha) o mais urgente é pensar em ações preventivas de orientação e de segurança digital. As famílias precisam ser mais bem informadas sobre os riscos envolvidos em deixar crianças e adolescentes com acesso livre e sem qualquer supervisão à internet. É preciso incentivar a supervisão, inclusive com o uso de ferramentas digitais de controle parental. A sociedade brasileira tem uma certa predileção em demandar soluções punitivas e já há quem defenda a criança de um crime de “abandono de incapaz” no meio virtual, que puniria o adulto responsável que deixasse a criança “sozinha” na internet.
A rede social que transmitiu o vídeo que a teria feito agir é responsabilizada? A legislação brasileira está adequada para enfrentar situações desse tipo?
No caso do Brasil, o Marco Civil da Internet é a principal lei que trata da responsabilidade de plataformas e provedores de conteúdo. No entanto, nos termos da citada lei, a responsabilidade civil se dá principalmente pela omissão em não retirar determinados conteúdos, depois de notificadas a fazê-lo (arts. 19 e 21 da Lei 12.965/2014). As assim chamadas big techs, por conta do contexto geopolítico atual que lhes é bastante favorável, principalmente nos Estados Unidos, desmontaram boa parte de suas equipes de moderação e parecem contar com a ausência de regulamentação estatal. A legislação brasileira precisa, sim, ser aperfeiçoada, principalmente no que diz respeito à criação de deveres positivos de moderação e de mecanismos de verificação etária por parte dessas plataformas. Nesse sentido, há em tramitação no Congresso Nacional um importante projeto de lei (PL 2.628), que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital e traz importantes avanços nessa matéria.
Por Ana Dubeux do Correio Braziliense
Foto: Mariana Lins/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense