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Perigo para os jovens: o risco por trás da moda de misturar energético com álcool

As bebidas energéticas, como conhecemos, surgiram entre os anos 1980 e 2000 e...

As bebidas energéticas, como conhecemos, surgiram entre os anos 1980 e 2000 e conquistaram um público variado em todo mundo. No Brasil, elas são facilmente encontradas em supermercados e distribuidoras, pois se tratam de um produto regulamentado. No entanto, casas de shows, bares e boates comumente vendem essas bebidas em combos e drinks com bebidas alcoólicas. Uma combinação popular em festas e eventos noturnos — servida em baldes de gelo e com preços promocionais — que pode representar riscos à saúde, especialmente entre os jovens.

Para alertar sobre o potencial dano, existe a obrigatoriedade de informar no rótulo do energético que o uso associado não é recomendado, mas especialistas de saúde acreditam que o aviso não alerta efetivamente os consumidores. 

Rafael*, de 17 anos, diz que já passou por períodos onde o consumo foi mais frequente durante festas e eventos. Atualmente, ele reduziu esse hábito por sentir que não conseguia descansar após o consumo. “Além da rápida embriaguez ao consumir a mistura dessas duas bebidas juntas, um dos efeitos que eu sinto é aquela sensação de não conseguir parar, não conseguir ficar quieto num lugar só, precisar estar em constante movimento e também uma desidratação constante”, relata.

Em tese, o jovem, que é menor de idade, não poderia ter acesso a essa mistura, pois a venda de bebidas alcoólicas é proibida para menores de idade. No entanto, a realidade se impõe e, na prática, jovens com menos de 18 anos também fazem parte do público que consome energético com bebidas alcoólicas. 

Matheus Reginato, de 19 anos, que mora em Brasília, afirma que consome álcool com energético periodicamente e nunca sentiu nenhuma reação adversa. No entanto, ele é alertado com frequência sobre os riscos por pessoas próximas a ele. “Já pesquisei, e sou constantemente informado por parte dos meus familiares. Pelos riscos acredito que seja pouco divulgado”, comenta.

Por outro lado, a moradora de Paracatu (MG), Julia Barbosa, de 18 anos, tem uma percepção diferente sobre a reação dessa mistura. Ainda assim, não deixa de consumir. “Quando eu tomo esse tipo de bebida, me dá uma palpitação muito forte ou o coração começa a acelerar muito, só que a gente fica bem mais animado, bem mais para cima e um pouco fatigado”, contou ao Correio

A jovem comenta ainda que vê o consumo da mistura como frequente entre os jovens nas festas. Para ela, a prática pode ser vista por esse público como um meio de ingerir bebida alcoólica de “forma mais agradável” devido ao sabor adocicado do energético. 

Assim como a família de Matheus, que o alerta constantemente, muitos pais e mães se preocupam com o a saúde dos jovens que aderem à moda de misturar as bebidas energéticas com álcool.

A empresária Daniella Wassouf, de Brasília, tem dois filhos jovens. A Maria Eduarda, de 25 anos, e o João Pedro, de 19. Para ela, essa questão é delicada pois, na família, já existe história de questões cardíacas relacionados ao uso de energéticos, por isso, ela conversa com os filhos com frequência, embora tenha a clara percepção de que os ambientes em que eles convivem apresentam perigos constantes. 

“Eu sempre orientei eles a não misturar o energético com bebida alcoólica. Mas isso é praticamente impossível na vida social que eles têm. Eles vão para festa, para shows e o que mais tem nesses ambientes é oferta do energético com vodca. É a bebida gostosa e docinha que engana. Eu fico um pouco preocupada porque o pai deles, quando toma energético, o coração acelera um pouco, então ele evita. Os meninos nunca tiveram problema, porém eu realmente oriento para não misturar, mas é meio bem complicado, meio difícil?”

Quem enfrentou problemas na associação do álcool com o energético foi o ator Rafael Zulu. Em entrevista ao programa Sem censura, em maio deste ano, ele contou que foi parar no hospital após consumir energético com bebida alcólica em grande quantidade. O ator ficou internado por quatro dias e recebeu o diagnóstico de fibrilação atrial. 

“Minha família historicamente tem pressão alta, é hipertensa, mas eu nunca tive nada, minha pressão é de criança. A médica me falou ‘cara você está com uma fibrilação atrial’. Seu coração em vez de estar batendo no compasso, está batendo descompassado. Você vai ficar internado porque a evolução disso pode virar um trombo ou AVC. É muito comum isso acontecer”, comentou o ator.  

Riscos da mistura do álcool com energético

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou, em 2005, que as empresas que produzem bebidas energéticas informem nos rótulos que não é recomendado misturar o produto com bebidas alcoólicas. A decisão foi tomada com base em discussões regulatórias internacionais que indicam que essa mistura aumenta a chance de comportamentos de risco e de intoxicação alcoólica. Isto porque favorece o consumo excessivo e reduz a percepção de embriaguez em função do efeito estimulante da cafeína presente nos energéticos. 

Arthur Guerra, psiquiatra especialista em dependência de álcool e drogas e saúde mental do Hospital Sírio Libanês, explica que a redução da sensação de embriaguez leva o usuário a consumir mais álcool e tomar decisões perigosas que podem ser fatais. O especialista explica que essa prática recebe o nome de binge drinking e é mais nociva entre os jovens.

“O cérebro dos jovens ainda está em desenvolvimento. Isso dura até mais ou menos os 25 anos. Então, especialmente na região do córtex pré-frontal, existem alterações que, com a mistura de bebidas energéticas com álcool, mudam de forma radical a tomada de decisão, controle dos impulsos e avaliação de risco. Isso para o jovem pode ser fatal”, declara o especialista. 

Outro risco que a ingestão de álcool e energético pode gerar, especialmente em excesso e com frequência, está relacionado à saúde do coração. Médicos apontam que existe um risco cardíaco relevante, especialmente para aqueles que já têm predisposição ou alguma condição anterior. Segundo o cardiologista Fernando Torres, da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), entre os jovens esse alerta soa ainda mais alto porque, em geral, esse grupo não realiza check-ups. Ele orienta que é necessário se informar sobre o histórico familiar e procurar o médico regularmente para evitar maiores questões.

“O paciente que tem fator de risco, problema no coração, hipertensão não é recomendado nem o uso abusivo do energético, muito menos a associação com a bebida alcoólica. Isso pode agravar, induzir arritmias, causar descontrole da pressão arterial e o paciente ter consequências graves, infarto, AVC, e pode aumentar o risco de morte sim”, comenta Fernando Torres, médico da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). 

Aviso no rótulo informa, mas não alerta

A composição das bebidas energéticas é regulamentada pela ANVISA através da RDC nº 719, de 2022. Ao Correio, a Agência informou que a resolução exige que as bebidas energéticas tenham uma quantidade de álcool inferior a 0,5 ml por 100 ml. “Além disso, os rótulos dessas bebidas deve veicular os seguintes alertas em destaque e negrito: a) “Crianças, gestantes, nutrizes, idosos e portadores de enfermidades: consultar o médico antes de consumir o produto”; e b) “Não é recomendado o consumo com bebida alcoólica”, afirma.

Os médicos ouvidos pela reportagem apontam que o aviso presente no rótulo do energético é importante, porém insuficiente para alertar efetivamente sobre os riscos do consumo associado. 

“É um aviso romântico. É um aviso que não convence ninguém. O que falta mesmo são campanhas maiores, campanhas de prevenção e de educação?” reflete o psiquiatra Arthur Guerra.

Na mesma linha, o cardiologista Fernando Torres, da SBC, pondera que deveria haver uma campanha nacional de conscientização. “Informar ao pessoal sobre essa associação o quanto pode ser perigosa. Os alertas que são obrigatórios são muito discretos e as pessoas às vezes não percebem”, comentou. 

Médicos defendem campanhas de conscientização mais amplas 

O psiquiatra Arthur Guerra aponta que o ideal seria que a população em geral, e de modo especial os jovens, fossem alertados sobre os possíveis riscos da ingestão de álcool com energético. E para isso, campanhas nacionais amplas e baseadas em dados científicos deveriam ser realizadas. “Essas campanhas deveriam divulgar os efeitos adversos dessa combinação, como o mascaramento da percepção de embriaguez, o aumento do risco de ingestão excessiva de álcool e os impactos ao sistema cardiovascular. O ideal é que essas informações sejam transmitidas de maneira acessível”, comenta.

Para o médico, essas campanhas deveriam ter, como embaixadores pessoas relevantes e famosas capazes de se comunicar com os jovens. “O modelo mais eficaz seria aquele que utiliza porta-vozes com os quais os jovens se identifiquem — como artistas, influenciadores ou atletas — que abordem o tema de forma direta, transparente e empática. Mais do que uma atuação publicitária, é importante que esses representantes ‘vistam a camisa’ da causa, transmitindo a mensagem de forma autêntica. Essa identificação facilita o engajamento do público e torna a comunicação mais eficiente”, pontua. 

Já o cardiologista Fernando Torres defende que as campanhas deveriam ser amplas e conscientizar, de modo geral, sobre os hábitos nocivos à saúde. “Seriam campanhas de prevenção de eventos cardiovasculares, conscientizando sobre hábitos de vida mais saudáveis. Não seriam campanhas mencionando diretamente o uso de energéticos com álcool, mas contra todos os hábitos nocivos à saúde,  como o tabagismo e sedentarismo, por exemplo”, comenta.

Perigoso, porém liberado 

Embora haja um reconhecimento da classe médica e da Anvisa sobre os potenciais riscos da mistura de bebidas alcoólicas com energéticos, não existe regulamentação que proíba a venda desses produtos de forma associada. 

A reportagem do Correio localizou diversos casos de bares e casas de show que vendem combos de bebidas destiladas como gin, vodca e uísque com latas de energético. Também foram encontrados drinks que misturam as bebidas com extratos, frutas e licores. Uma loja de Brasília oferece como presente para o aniversariante que levar 25 convidados um combo de vodca Absolut com cinco energéticos, além da mesa decorada com balões. 

Outras unidades não vendem garrafas de bebidas sem o energético. O Correio preferiu não divulgar os nomes dos estabelecimentos, pois não há nenhuma irregularidade na venda desses produtos. 

A responsabilização dos estabelecimentos é um ponto que divide opiniões entre os consumidores. Para Matheus, a venda dos combos estimula a compra. “Até porque parece algo normal e prático”, destaca. No entanto, o jovem acredita que o consumo é uma escolha individual. 

Júlia, entretanto, acredita que os locais de venda também precisam ter responsabilidade na conscientização. “Os estabelecimentos devem sim ser responsabilizados por venderem os combos, porque eles têm a opção de não vender junto para não influenciar, porém, preferem vender por uma questão mais rentável mesmo”, comenta. 

O jovem Rafael assume uma postura mais moderada. Para ele, a questão vai além da responsabilização dos estabelecimentos. “Ou toda a comunidade da venda de destilados, é, entra em um consenso, ou esse problema vai continuar acontecendo”, argumenta. “Porque  se um estabelecimento parar de vender o outro estabelecimento vai estar vendendo”. 

Não há lei que proíba a venda de álcool e energético 

Procurada, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (ABIR), destacou que as bebidas energéticas contêm componentes estimulantes em níveis seguros, encontrados, inclusive, em outros produtos consumidos no cotidiano da população, como café. A ABIR afirmou que “as bebidas energéticas são atualmente vendidas em mais de 175 países pelo mundo, estando em conformidade com as melhores e mais aprimoradas regulações internacionais”. 

Além disso, a associação informou que o setor de bebidas energéticas do Brasil tem um compromisso, uma espécie de pacto das empresas associadas para a composição, rotulagem e comercialização responsável. Um dos pontos deste compromisso trata justamente da relação de energético com álcool. “Não promover ou fazer qualquer alegação sobre a neutralização dos efeitos do álcool em função do consumo de bebidas energéticas associado a bebidas alcoólicas”, diz o documento. 

A Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe) também foi procurada e afirmou que observa as tendências de mercado e não incentiva a mistura de álcool e energéticos. “Temos acompanhado com atenção as discussões em torno da mistura de bebidas alcoólicas com energético, especialmente diante da visibilidade que esse tema ganhou nas redes sociais. Trata-se de um assunto que já mobiliza uma postura clara por parte das empresas associadas: essa não é uma combinação recomendada e, por isso, não é incentivada em seus canais de comunicação. Cada marca orienta seus consumidores com base nas características dos próprios produtos e no compromisso com práticas responsáveis. Seguimos atentos às tendências de consumo e abertos a avaliar temas que mereçam atenção adicional do setor” afirmou, em nota, Cristiane Foja, presidente executiva da Abrabe.

A Associação Brasileiras de Bares e Restaurantes (Abrasel) informou que “orienta os bares e restaurantes a sempre seguirem as recomendações das autoridades de saúde, além de cumprir as normas legais de órgãos como a Anvisa”. “No caso específico das interações entre bebidas alcoólicas e bebidas chamadas de “energéticos”, no entanto, não há hoje nenhum tipo de campanha específica promovida pela entidade junto ao mercado de alimentação fora do lar”, diz o texto. 

Correio procurou três marcas, incluindo duas das maiores fabricantes de energéticos no Brasil para saber sobre campanhas de conscientização para além do aviso no rótulo. Em resposta, a Red Bull afirmou que “não comenta sobre ações e/ou campanhas internas da companhia” e ressaltou que as informações legais constam na lata do produto. 

Já a brasileira Baly apresentou a Edição Celebre, energéticos disponíveis nos sabores Champanhe, Caipirinha e Floripa Tropical Spritz, mas sem álcool. Segundo a companhia, o lançamento tem o objetivo de “oferecer uma opção saudável e atrativa para as celebrações diárias e baladas”. A Monster não respondeu. 

O Correio não localizou propostas legislativas que tratem da proibição da comercialização de energéticos com bebidas alcoólicas. Em que pese o tema seja delicado e demanda atenção para preservar a saúde da população, em especial dos jovens, ainda não encontrou respaldo no legislador. É importante salientar que existem níveis seguros de consumo das bebidas, e o risco está associado à mistura e consumo excessivo, principalmente para os jovens. 

Por fim, a Anvisa ressalta que ainda que a prática comercial não esteja vedada, é fundamental reforçar o direito do consumidor à informação adequada sobre os produtos que consome. “A rotulagem obrigatória contribui para esse direito ao oferecer orientações claras sobre a forma segura de uso dos produtos” .

(*) Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense       

Foto: Meta AI

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