“Diante do estado em que cheguei ao hospital depois da colisão, os médicos decidiram chamar minha família para se despedir. Não tinham esperanças. Então, antes de ser levada à sala de cirurgia, segurei na mão de minha mãe e disse a ela que ficaria tudo bem. Apesar de tudo, sobrevivi”. O relato é de Taís de Assunção, motociclista vítima de um sinistro de trânsito em junho de 2016, em São João d’Aliança (GO).
Conduzido por um motorista embriagado, um carro bateu na moto de Taís durante a travessia em uma ponte. Aos 22 anos, a então atendente de restaurante teve parte do braço esquerdo dilacerada. “Acordei com gritos desesperados ao meu redor, ainda no local do acidente. Lembro apenas de sentir muita dor na perna, dormência no braço e a vista embaçada. Depois, apaguei”. A jovem foi encaminhada ao Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF).
Somente em 2024, a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) contabilizou 4.168 internações de urgência por sinistros de trânsito — foi como se, a cada duas horas, chegasse alguma vítima em estado grave nos hospitais públicos da capital do país. O número revela uma face, muitas vezes, ignorada pela comunidade, órgãos de trânsito e autoridades: as sequelas físicas e psicológicas dos sobreviventes dessas tragédias.
Os dados sobre a quantidade de pessoas que apresentam sequelas permanentes após sinistros de trânsito são fragmentados. No entanto, é possível ter uma ideia da dimensão do problema a partir do número de solicitações do Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (DPVAT) no DF. De 2021 a 2024, 5.034 pessoas solicitaram a indenização por invalidez permanente por meio do seguro, conforme levantamento da Caixa Econômica Federal.
Ainda segundo a instituição, 77% de todas as solicitações de invalidez permanente referem-se a acidentes com moto. No caso de Taís, o sinistro resultou na amputação de parte do braço esquerdo, na perda do tendão, em uma fratura na coluna e outra, exposta, na tíbia (osso localizado na perna) e um corte profundo na cabeça. Ela perdeu cinco centímetros de osso, posteriormente recuperados durante a reabilitação. Foram quatro anos e meio de tratamento intensivo no Hospital de Base, desde a locomoção por cadeira de rodas até sua total independência.
Álcool e velocidade
O HBDF é referência em atendimento a traumas no Centro-Oeste. Das 1.647 internações de urgências por sinistros de trânsito ocorridas neste ano, até maio, 30% — de toda a rede pública do DF — foram no Base, segundo a SES-DF. Tratar fraturas expostas, traumas cranioencefálicos e lesões na coluna fazem parte da rotina dos profissionais que atuam na sala vermelha, para onde são levadas as vítimas mais graves.
“As infecções pós-operatórias, principalmente aquelas resultantes de fraturas expostas, trazem grande dano psicológico e físico aos pacientes, tanto que algumas pessoas ficam seis, sete anos fazendo tratamento. Alguns deles desistem e falam ‘prefiro ir para a amputação (procedimento final) para tentar ter paz e tranquilidade'”, explica Rodrigo do Carmo Silva, médico ortopedista e traumatologista, chefe da Ortopedia do HBDF.
Segundo o especialista, existem padrões no perfil das vítimas e nos contextos. “Durante a semana, entre 7h e 10h, a maioria dos pacientes que chegam são motociclistas que estavam a caminho do trabalho. De madrugada, em especial nos fins de semana, são pessoas que estavam em festas e embriagadas, ou as vítimas desse indivíduo alcoolizado. Mas, de forma geral, podemos dizer que o principal grupo é de homens jovens”, descreve o médico.
“O objetivo da fisioterapia é devolver a funcionalidade àquele paciente. E isso vai desde de conseguir subir a escada do prédio onde mora até voltar a trabalhar. Infelizmente, há casos em que a pessoa realmente não volta a andar ou, quando volta, anda mal e com dor. (O corpo) nunca volta ao que era antes”, esclarece o fisioterapeuta do HBDF André Luiz Maia, especialista em traumato/ortopedia.
O fisioterapeuta compartilha que são comuns os relatos de arrependimento por parte desses pacientes. “Muitos olham para as sequelas e dizem, por exemplo, que se não tivessem corrido tanto, não precisariam estar naquelas condições”, comenta. As vítimas de trânsito são o maior grupo, no hospital, que necessita desse tipo de reabilitação. O tempo médio de tratamento vai de oito meses a um ano.
A velocidade desempenhada nas pistas é um dos principais fatores que determinam a gravidade de uma sequela. “Traumas em alta velocidade sempre causam mais dano ao paciente, podendo resultar, por exemplo, em esmagamento de membros”, destaca Rodrigo do Carmo.
Impacto econômico
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que foram gastos mais de R$ 38 milhões em internação e tratamento de 2014 a 2024 somente no DF. “Os custos de toda a ordem não são somente econômicos, mas também sociais e políticos. Atingem o orçamento público e, direta e indiretamente, as famílias”, afirma César Bergo, economista, sociólogo e professor de mercado financeiro na Universidade de Brasília (UnB).
Com os sonhos interrompidos, Nancy Sirlene Vaz, 43, viu a necessidade bater à porta quando sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica em 2021. “Recebi o auxílio doença por dois anos. Ainda hoje, tenho muitos gastos com remédios e alimentação. Sem contar as despesas familiares com meus dois filhos, dos quais cuido sozinha. Tive que me adaptar e começar a realizar vendas online para conseguir sobreviver”, relata.
Nancy ainda se lembra, emocionada, do momento que recebeu a notícia da tetraplegia. “Passei vários dias pensando que estava em um pesadelo e que iria acordar logo. Depois, bateu o desespero de pensar em como iria viver na minha atual situação”, diz. Nesse contexto, investimentos em qualidade de vida que forneçam recursos e possibilitem recuperar a independência financeira após a recuperação são primordiais, segundo Bergo.
“Muitas vezes, o acidentado não tem condições de manter a família, e há situações em que o veículo envolvido no sinistro era a única fonte de renda daquela pessoa. Nesse sentido, a reabilitação tem que ser pensada para além da questão física, de mobilidade, sendo necessário criar condições para que aquela pessoa continue produzindo”, observa o economista.
Reabilitação
Nancy Sirlene sofreu uma lesão medular, que compromete membros superiores e inferiores, e necessita de uma cadeira de rodas para se locomover. Além dessa limitação, sofre com problemas relativos ao funcionamento da bexiga e do intestino. “Quando ela (Nancy) chegou, não conseguia passar da cadeira de rodas para cama, o que já foi superado. Agora, temos trabalhado exercícios que auxiliem na sua rotina de autocuidado”, conta o professor de educação física, Rodrigo Rodrigues, do Hospital Sarah Kubitschek.
A paciente também sofre com dores neuropáticas e movimentos involuntários nas pernas, como espasmos ou contrações, cujo tratamento visa controlá-los. A fisiatra da Rede Sarah Angélica Sayemi Kuwae destaca que, para passar pela reabilitação, o paciente precisa estar relativamente estável. “Não podemos antecipá-lo a uma condição clínica, pois corre-se o risco de prejudicar todo o tratamento”, ressalta, acrescentando que os acidentes automobilísticos são maioria entre os pacientes com lesão medular.
O trabalho dos profissionais é potencializado com a rede de apoio dos pacientes, fundamental para a reinserção dessa pessoa em sociedade ser o menos difícil possível. “Nossa preocupação é sempre tratar pessoas, e não doenças. Portanto, diante de um cenário de lesão irreversível, é importante que ajudemos a ressignificar os sonhos, independentemente das sequelas”, destaca Lorena Moraes Macedo, pediatra e uma das gestora da unidade Lago Norte do Sarah.
Esta é a segunda reportagem da série Para ninguém esquecer, que investigou as histórias por trás dos memoriais de luto e conversou com sobreviventes e familiares de vítimas do trânsito.
Três perguntas | Elizabeth Queiroz
*Especialista em psicologia hospitalar e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)
Quais impactos emocionais pode sofrer um sobrevivente de sinistro de trânsito?
Cada pessoa reage de forma diferente a eventos adversos como um acidente de trânsito, a depender de recursos pessoais e de sua rede de apoio familiar e comunitária. O acesso a serviços de saúde também é uma variável que impacta o bem-estar emocional de pessoas nessa condição. Na maioria das vezes, essas pessoas passam a lidar com uma situação de estresse relativa a várias ameaças: à vida e a sentimentos de proximidade da morte, à integridade e conforto físico; ao autoconceito; ao equilíbrio emocional; ao desempenho de atividades relacionadas a papéis sociais; e ameaças que envolvem a necessidade de ajustamento a um novo ambiente físico e social — do hospital e seus diferentes profissionais.
Como acolher adequadamente a pessoa que passou por esse trauma e, dependendo, até perdeu outros entes ou amigos na tragédia?
O processo de enfrentamento é individual e dependente de recursos pessoais, como idade, gênero, escolaridade, estado civil e condição socioeconômica. Esses fatores sofrem grande influência do apoio recebido, que pode se manifestar de três formas: emocional, informacional e instrumental. Em geral, no momento inicial de contato com a nova condição, amigos e familiares focam muito no apoio emocional, aquele que valoriza os laços afetivos existentes e reforça o valor daquela pessoa pela validação dos sentimentos. À medida que o quadro funcional é estabelecido, profissionais de saúde têm um papel muito importante no sentido de repassar informações técnicas realistas sobre a condição atual e prognóstico, além de oferecer recursos concretos para lidar com as sequelas físicas existentes. Uma escuta ativa é condição central para a definição de objetivos que favoreçam o processo de reabilitação.
Como a família dessa pessoa que sofre sequelas permanentes de sinistros de trânsito é impactada por esse evento?
O estresse da família é comparável com o estresse da pessoa acometida, uma vez que a situação demanda uma adaptação de todos à nova condição. O desconhecimento do prognóstico pode ser motivo de grande ansiedade e mobilizar sentimentos ambíguos que interferem na comunicação com o familiar e com a equipe de saúde. Nesse sentido, deve ser dada atenção aos membros da família para favorecer a compreensão do quadro e facilitar o processo de enfrentamento.
*Estagiário sob a supervisão de Patrick Selvatti
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O Correio publica dados sobre as vias mais perigosas que cortam o DF e apresenta o perfil das principais vítimas do trânsito na capital.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Arquivo pessoal