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“O Brasil já está condenado como na Inquisição”, afirma Ricupero

A abertura da investigação contra o Brasil, pelos Estados Unidos, no âmbito da...

A abertura da investigação contra o Brasil, pelos Estados Unidos, no âmbito da Seção 301 da Lei Comercial norte-americana, abriu mais um flanco na disputa comercial entre os dois países, mas pode ser positiva o governo brasileiro ganhar tempo na entrada em vigor da sobretaxa de 50% sobre os produtos brasileiros, prevista para 1º de agosto, na avaliação do diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. “Isso pode permitir, primeiro, quem sabe, um prazo maior, porque a investigação não vai terminar no dia 1º de agosto. E, como há sessão marcada para o dia 3 de setembro, haveria mais tempo”, afirma Ricupero, em entrevista ao Correio, na quinta-feira (17), por telefone.

Na avaliação do ex-ministro, contudo, o Brasil já está condenado antes mesmo de se defender na audiência marcada para 3 de setembro pelo representante de comércio dos EUA, o USTR, e não terá a mínima chance, “como no tribunal da Inquisição”, na Idade Média. “Ele já está condenado”, afirma. Para ele, o presidente dos EUA, Donald Trump, resolveu abrir o processo para tentar dar alguma justificativa às medidas contra o Brasil que não têm fundamento do ponto de vista técnico, mas seguirá uma estratégia de forçar uma negociação permanente.

Diplomata de carreira, Ricupero não poupa críticas ao modus operandi de Trump e do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu filho, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que está sendo patrocinado pelo ex-capitão em solo norte-americano. “O Eduardo Bolsonaro está cometendo um suicídio político. Ele, dificilmente, no futuro vai ter condições de poder enfrentar a opinião pública brasileira”, profetiza. A seguir, os principais trechos da entrevista:

O governo dos Estados Unidos no âmbito da Seção 301 e chegou a atacar o Pix e o comércio da 25 de Março, em São Paulo. Como o senhor avalia a reação do Brasil?

Bem, eu vejo a situação como, de fato, uma ameaça grave. Indo por partes, isso começou no dia 9 de julho, quando ele enviou aquela mensagem ao Lula por canais extraoficiais, tanto que que o Itamaraty depois teve que chamar o encarregado de negócios para confirmar se aquela mensagem era autêntica ou não. Normalmente, uma mensagem de um presidente a outro vem por canais oficiais, vem da Embaixada, que envia o Ministério das Relações Exteriores, que encaminha ao presidente da República. Existe um protocolo, mas o Trump mandou por uma mídia social qualquer, tanto que a mensagem foi devolvida, porque não vinha de acordo com as normas usuais. E essa mensagem misturava dois tipos de assunto. A primeira parte da carta era uma referência ao que ele considera perseguição a Bolsonaro e às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relativas ao conteúdo das plataformas, das big techs. E a segunda parte era mais parecida a essas mensagens que ele envia a muitos países, como a União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, o México e o Canadá, ameaçando em cada caso aplicar uma tarifa num determinado nível, se eles não negociarem, e colocando um prazo. Então, são duas mensagens em uma, porque são dois temas diferentes. O primeiro tema é, obviamente, fora de qualquer possibilidade de negociação.

Pode explicar melhor?

É uma contestação à ação de um Poder soberano do Brasil, que é o Judiciário. Inclusive, uma mensagem enviada a um destinatário errado, porque o Lula não tem nada a ver nem com a punição do Bolsonaro, nem com as decisões do Supremo. O Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por causa daquela reunião que ele fez com embaixadores, no Palácio do Alvorada. E ele está respondendo, agora, a outro processo do STF, acusado de conspiração. Ainda que o Lula quisesse responder, ele não tem o que responder, porque isso deveria ser dirigido ao Judiciário. Essa é uma parte inegociável, que não pode ser objeto de nenhum tipo de consideração. Agora, a outra parte, que é a questão do comércio, não é diferente do que Trump tem feito com um número enorme de países.

Qual a sua interpretação da Seção 301?

A minha impressão é que isso aconteceu, porque o governo Trump se deu conta de que a aplicação de sanções de tarifas ao Brasil num contexto de um tema político de soberania era uma medida ilegal até do ponto de vista norte-americano. O Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, por exemplo, escreveu duas postagens na internet citando a lei comercial mostrando quais eram os casos em que um presidente norte-americano poderia impor tarifas. Nenhum dos casos se enquadra no caso brasileiro. Acho que eles ficaram alertados para a falta de uma base legal e resolveram abrir essa investigação da Seção 301. Como a lei exige, eles mandaram esse documento de 15 páginas em que relacionam um número enorme de questões, até desconexas, porque vão do comércio da 25 de Março até o desmatamento da Amazônia. Porque no caso da alegação política, como eu disse, você não teria nem onde começar, não teria nem por onde dialogar. Nesse caso, não. Isso segue uma regulamentação. O USTR, inclusive, estabelece as audiências públicas e já tem uma marcada para 3 de setembro. Nessas audiências, ouvem-se as partes. Ao menos, agora, o governo norte-americano oferece um processo. Só que não dá qualquer garantia de imparcialidade.

Por quê?

Estamos falando de Trump. Esse mecanismo 301 é antigo, não é de agora. Quando fui embaixador do Brasil, no GATT, em Genebra, de 1987 a 1991, durante quase toda a rodada do Uruguai, eu era o chefe da delegação do Brasil lá em Genebra, que, agora, é a sede da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na época que eu estava lá, os EUA já tinham acionado essa Seção 301, no caso do Brasil, sobre as patentes para remédios. Eles alegavam que o Brasil não reconhecia patentes para medicamentos nem o processo. É uma coisa antiga, tem mais de 30 anos. Não só o Brasil, mas também os outros países nunca admitiram a legalidade desse mecanismo, porque, pela lei internacional, teriam que pedir uma investigação na OMC, pelo Departamento de Solução de Controvérsias. Mas, obviamente, esse mecanismo deles é totalmente unilateral e parcial, porque é um tribunal em que o mesmo país é promotor público, é juiz e é executante do processo. É como se a mesma pessoa fosse o acusador, o juiz que dá a sentença e o carrasco que executa. É óbvio que é um tipo de mecanismo em que o acusado não tem a mínima chance. Ele (o Brasil) já está condenado, como tribunal da inquisição. Quem era denunciado à Inquisição nunca saía inocentado. Por definição, é culpado.

O senhor não está otimista?

Eu não sou otimista. O fato de eles mandarem essa carta com 15 páginas, em que todo mundo discute um argumento e outro, mas, no fundo, é claro, até por uma questão de dignidade, mostrar que tudo é bobagem. Mas você não pode ter muita esperança de que o resultado vai ser a condenação. Apenas a única coisa que eu diria é que isso pode permitir, primeiro, quem sabe, um prazo maior. Porque a investigação não vai terminar no dia 1º de agosto. E, como há sessão marcada para o dia 3 de setembro, haveria mais tempo. Seria bom se pudesse ter um prazo maior, porque é como no caso dos outros países, o prazo foi sendo estendido cada vez mais. E também porque acho que, com o atual governo dos EUA, o máximo que se pode desejar não é um acordo definitivo, mas é uma espécie de estado de negociação permanente, porque ele sempre reabre. O máximo que vai acontecer é negociar uma sanção menor do que essa de 50%.

Agora, é curioso que esse estado de negociação permanente parece uma marca do Trump. Ele estica a corda para depois negociar?

Ele quer deixar o adversário sempre desestabilizado. E, com isso, ele está sempre tomando novas iniciativas para obter mais concessões. Agora, eu acho que há muitas ilusões. Muita gente tem falado, até colegas meus diplomatas, dizem, que precisamos negociar, por exemplo, o etanol, porque o Brasil tem uma tarifa maior, de 16%, 18%, do que a tarifa deles sobre o nosso etanol e cana-de-açúcar. Agora, todas as pessoas que dizem isso estão partindo de uma pressuposição equivocada, a de que nós nunca quisemos negociar. A verdade é que isso não é certo.

Como assim?

O Brasil tentou negociar várias vezes e eles que é que não quiseram. É preciso lembrar uma frase que os americanos usam muito, eles dizem que para dançar o tango você precisa de duas pessoas. E a negociação é a mesma coisa. O Brasil, no mês de março, mandou uma missão aos Estados Unidos e tentou negociar. Essa presunção que está sendo repetida aqui não é verdadeira. Não é verdadeira. O Brasil sempre esteve disposto a negociar o comércio. Ele nunca quis negociar questões de soberania nacional. As pessoas que falam em negociação sobre o etanol, ou não conhecem, ou estão sendo ingênuas, porque o Brasil tentou negociar o etanol sugerindo que os americanos fizessem concessões, ou em suco de laranja, porque encontramos muitas barreiras no mercado norte-americano para o suco de laranja por causa da Flórida. Eles não aceitaram nem conversar sobre uma coisa nem sobre outra. Essas pessoas que fazem essas declarações pensam que os americanos estão de boa-fé. Mas, eu tenho minhas dúvidas. Na verdade, eles não querem negociar, eles querem extorquir. Eles querem que o Brasil faça concessões unilaterais sem esperar nada em troca.

E o que o senhor acha desse procedimento da Seção 301?

Infelizmente, esse mecanismo, vai demonstrar que eles não estão interessados numa negociação real. Oxalá eu esteja equivocado. Mas os precedentes me levam a crer que na área que eles são protecionistas, eles não vão ceder. Você sabe, as pessoas todas partem da presunção de que eles são os heróis e nós somos os vilões. Mas isso é equivocado. Eles têm protecionismo exacerbado, por exemplo, em açúcar, em arroz, em etanol, em suco de laranja, em algodão. O Brasil já ganhou uma vez um julgamento na OMC contra os Estados Unidos por causa dos subsídios ao algodão. Eles, em vez de retirar os subsídios, preferiram pagar a multa. Pagaram vários milhões de dólares ao Brasil, mas não retiraram os subsídios, porque os subsídios ao algodão decorrem da ação do lobby mais poderoso do Texas. Há muita ignorância sobre o panorama norte-americano, porque, mesmo a média das tarifas deles, que era baixa, agora com o Trump, já no mês de maio, estava em 8,5%, que é praticamente o nível teórico das tarifas brasileiras. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) publicou um documento há pouco tempo mostrando que as tarifas que o Brasil efetivamente aplica aos produtos americanos, como há muitas exceções, são menos de 3%. Na prática, o que é que o Brasil vai negociar?

Então o Brasil não é protecionista em relação aos Estados Unidos?

É, em teoria. No livro tem essas tarifas, mas, na aplicação prática, a tarifa aplicada aos produtos americanos é inferior a 3%. Por isso, é que os americanos têm exportado muito para o Brasil. Basta ver os documentos da AmCham que mostram que o saldo comercial americano aumentou. Então é preciso dizer isso. E a esperança que podemos ter de, pelo menos, reduzir essas tarifas para 10% é usar a ajuda do setor exportador americano. Se nós vamos perder, os americanos vão perder mais, porque eles têm saldo comercial positivo com o Brasil. É um raciocínio muito simples. Se, nos últimos 15 anos, venderam ao Brasil US$ 410 bilhões a mais do que compraram, se zerar o comércio, eles perdem mais.

E no Brasil, quem perde mais?

Os maiores prejudicados são a Embraer, a WEG, fabricante de motores de Santa Catarina, e a Tupi, que exporta ferro fundido. Mas é preciso ver caso a caso. A American Chamber of Commerce, que é uma câmara de comércio norte-americana, publicou um documento dizendo que mais de 6 mil pequenas empresas dos EUA dependem de importação de produtos brasileiros. A melhor esperança que o Brasil pode ter é mobilizar esse setor, porque, obviamente, ele tem mais influência sobre o Trump do que o governo brasileiro ou a nossa diplomacia.

A estratégia não será a via diplomática no caso?

O Trump não é sensível à diplomacia. Ele não fala com diplomata. Ele fala com homens de negócios. Os diplomatas brasileiros são úteis no caso da Seção 301, porque quem vai representar o Brasil vai ser a Embaixada ou o vice-presidente Geraldo Alckmin. O Brasil também pode procurar os diplomatas brasileiros em Washington, por exemplo, para mobilizar os estados americanos em que o Brasil já tem indústria. São vários. Se há 3.800 empresas americanas com investimento no Brasil, por outro lado, há mais de 2.600 empresas brasileiras com investimento nos EUA. É preciso mobilizar esses estados, porque muitos deles são republicanos e têm acesso ao presidente Trump. Há uma ampla gama de coisas que se pode fazer. Mas, sem muita ilusão, porque como eu disse, da parte deles, não há boa-fé. Só espero que essa decisão possa ser negociada quanto ao prazo e quanto ao montante da sobretaxa.

A Lei de Reciprocidade seria um tiro no pé do governo brasileiro?

Não, eu acho que não, porque a Lei de Reciprocidade dá ao Brasil a possibilidade de retalhar se o pior acontecer. A reciprocidade é como uma bomba atômica. Você tem que possuir um elemento para não usar. Você tem que dizer, olha, se você me aplicar tal e tal coisa. Você não me deixa retalhar. Eu não quero fazer isso, mas está nas suas mãos. Nessa investigação, por exemplo, eles fazem acusações infundadas, entre outras, de que o Brasil não protege a propriedade intelectual, de que o Brasil está aplicando taxas sobre serviços de telecomunicação. Você sabe, isso em inglês se chama uma self-fulfilling prophecy, uma profecia autorrealizável. Se eles estão me castigando por uma coisa que eu não estou fazendo, estão me convidando a fazer essa coisa. Isso pode ser utilizado como argumento dentro do processo da Seção 301, porque a impressão que eu tenho é que dentro desse processo, muitas das acusações vão se revelar infundadas, como essa do Pix. Isso vai se desmontar e no fim e vai ficar alguma coisa que eles vão se segurar para aplicar alguma medida. Esse é o cenário mais provável que vai acontecer.

Qual sua avaliação da escolha do vice-presidente Geraldo Alckmin como o negociador após as declarações de Lula na cúpula do Brics?

Primeiro, acho que o Alckmin é o interlocutor ideal. Ele é um conciliador, um homem que tem muito controle do que ele diz. Ele nunca faz declarações sem pensar, acho que ele é o interlocutor ideal para conduzir essa negociação. Por outro lado, independentemente das declarações de Lula na cúpula do Brics, mesmo se ele nunca tivesse dito uma palavra, ele já representa, pelas suas posições tradicionais, algo que é incompatível com o Trump. Certas pessoas têm dito que o Lula deveria tomar o telefone, deveria ir lá conversar com Trump, mas elas esquecem que, quando o Trump recebeu o Volodymyr Zelensky (presidente da Ucrânia), ele passou uma descompostura pública. O Lula também corria o risco de sofrer uma humilhação pública. É preciso tomar cuidado com o que se sugere. Já o Alckmin é diferente. Ele não vai negociar com o Trump. Vai negociar com os setores do governo americano, como o USTR, a Secretaria de Comércio, o Departamento de Estado.

Esses são os canais com os quais ele está tentando negociar e já vinha buscando desde a posse do Trump…

Com a investigação da Seção 301, agora, esses canais são abertos. Antes não tinha. A investigação tem um lado negativo, que é aquele acúmulo de acusações, um pouco sem perna e cabeça, mas por outro lado proporciona, como eu disse, um procedimento com regras. E a investigação prevê audiências públicas, prevê apresentação de documentos. Tudo isso não existia antes, agora vai passar a existir.

As medidas anunciadas por Trump, de certa forma, defendendo o Bolsonaro, na verdade, estão beneficiando o Lula no campo político. As pesquisas da Quaest, por exemplo, mostraram que a aprovação de Lula aumentou e a desaprovação diminuiu. Quer dizer que Trump está ajudando mais o Lula do que o Bolsonaro indiretamente?

Eu concordo plenamente. Esse tipo de medida é contraproducente. Ter o apoio público do Trump é pior do que não ter nenhum apoio. Porque você vê, isso já aconteceu com nas eleições canadenses, há dois, três meses atrás. O Trump apoiou o candidato que era o adversário do atual primeiro-ministro. Perdeu a eleição por causa do Trump. A mesma coisa aconteceu na Austrália. Então, eu acho que vai acontecer aqui também no Brasil, já está acontecendo. Inclusive, como você sabe, tradicionalmente a opinião pública brasileira rejeita a intromissão de uma potência estrangeira. E brasileiros que apareçam conspirando com o governo estrangeiro para prejudicar o Brasil passam a ser rejeitados pela opinião pública brasileira. Acho que o Eduardo Bolsonaro está cometendo um suicídio político. Ele, dificilmente, no futuro, vai ter condições de poder enfrentar a opinião pública brasileira. O que esses brasileiros estão fazendo é castigando o Brasil. Eles são muito desequilibrados. Eles não estão castigando o Lula. Para o Lula, está sendo um presente fantástico para a eleição de 2026. O Lula não sai perdendo, politicamente. Quem sai perdendo são os trabalhadores, os empresários…

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense       

Foto: Fotógrafo/Agência Brasil

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