Quarenta anos após o início do processo de redemocratização do Brasil, marcado pela morte de Tancredo Neves, em 1985, e pela posse de José Sarney, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim resgata, em entrevista ao Correio, os bastidores da Constituinte de 1987-1988 e reflete sobre os desafios da democracia. Também ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), Jobim teve atuação decisiva na elaboração do regimento interno e na condução dos principais debates que moldaram a Constituição de 1988. Ao revisitar episódios históricos — como as disputas sobre o parlamentarismo, a pressão dos grupos corporativos e o papel da sociedade civil —, ele também traça um paralelo com a crise institucional contemporânea, incluindo os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
Quando Tancredo Neves assumiu, já havia o compromisso da Aliança Democrática em substituir a Constituição de 1969. Como o senhor avalia esse acordo político assumido antes mesmo da posse de Sarney? Era algo inevitável dentro do processo de transição?
Não. Já havia uma predisposição para isso. Tanto é que o Tancredo tinha nomeado aquela Comissão Afonso Arinos, que foi criada para redigir um projeto de Constituição. Antes de morrer, ele já tinha feito isso. E aí o Arinos terminou o processo. Finalizaram os trabalhos e enviaram para o Sarney. Mas, como foi o Sarney que assumiu, não dava para ele enviar um projeto. Quem poderia enviar seria o Tancredo. Então, em Brasília, mandaram o projeto da Comissão Arinos apenas como subsídio para a Constituinte, não como anteprojeto de Constituição.
O senhor ainda não era deputado em 1985, mas já integrava o PMDB e, mais tarde, foi um dos principais relatores da Constituinte. Como se deram as primeiras articulações dentro do partido e entre outras forças políticas para viabilizar a nova Carta?
Quando eu vim para Brasília, em janeiro de 1987, já tinham começado a se discutir a Constituição. Eu fui almoçar na casa do Antônio Britto, que era deputado eleito pelo Rio Grande do Sul, e ele me convidou para visitar o doutor Ulysses Guimarães. Eu tinha estudado os regimentos internos de todas as Assembleias Constituintes brasileiras e de algumas constituições mais modernas, como as de Portugal e Espanha. Esses processos eram a disciplina do processo de elaboração de uma Constituição. O doutor Ulysses começou a falar nesse assunto, e eu fiz algumas observações. Acabei sendo indicado para conversar com o Pimenta da Veiga, que era o líder do PMDB, em 1986. Comecei a trabalhar com ele na elaboração do regimento interno da Constituinte, ao lado do então senador Fernando Henrique. Fui o braço direito dele nesse processo, porque eu dominava bem o assunto. Foi um trabalho complexo, com muita disputa, mas necessário.
Em julho de 1985, o presidente José Sarney enviou ao Congresso um projeto de emenda constitucional para convocar a Assembleia Constituinte. Qual foi o papel de Sarney e de seu governo nesse processo? Ele apenas cumpriu o compromisso da Aliança Democrática ou teve uma atuação mais ativa?
Ele enviou o projeto conforme havia sido ajustado com a Aliança. Alguns antigos membros do PMDB diziam que, inclusive, o Tancredo não queria saber muito de Constituição, achava que seria um problema, pelo menos foi isso que ouvi. O fato é que Sarney encaminhou a proposta para Câmara e o Senado, que numa sessão conjunta deveriam elaborar a Constituição. Havia uma tese, inclusive da Ordem dos Advogados do Brasil, de que a Constituição deveria ser feita por uma Assembleia Constituinte exclusiva, eleita apenas para isso, e depois dissolvida. Mas esse modelo não foi enviado por Sarney. O projeto foi enviado como Proposta de Emenda à Constituição de 1969 e foi para a Comissão de Justiça da Câmara, com relatoria do deputado Flávio Bierrenbach, que propôs o modelo da OAB (constituinte exclusiva). Essa proposta foi rejeitada. No fim, aprovou-se integralmente a proposta de Sarney, que era mais viável do ponto de vista eleitoral e institucional. Todas as Constituições brasileiras anteriores haviam sido feitas por Congressos Constituintes, ou seja, por deputados e senadores, e foi esse modelo que acabou prevalecendo como mais adequado.
Naquele período, havia um debate sobre o modelo da Constituinte. Se deveria ser exclusiva ou se deveria funcionar em conjunto com o Congresso já eleito. Como foi essa disputa nos bastidores? O modelo adotado, do Congresso Constituinte, foi o mais adequado?
Foi aprovado o modelo do Congresso Constituinte. A eleição de 1986 ocorreu, e o PMDB obteve a maioria absoluta na Câmara. Foi uma vitória estupenda! Elegemos 22 dos 23 governadores, perdemos apenas em Sergipe. Fizemos uma base muito forte tanto na Câmara quanto no Senado. No início da Constituinte, houve uma impugnação alegando que os senadores eleitos em 1982 não poderiam participar da elaboração da Constituição, mas o presidente da Assembleia Constituinte, ministro Moreira Alves (então presidente do STF), decidiu que todos os deputados e senadores em exercício participariam, conforme previsto na emenda constitucional. Foi uma decisão importante para viabilizar o funcionamento do Congresso Constituinte.
A Constituição de 1988 foi resultado direto dos compromissos firmados na campanha da Aliança Democrática de 1984 ou o texto final avançou além daquilo que Tancredo Neves, Sarney e outros líderes imaginavam na época?
Na eleição de 1986, o tema da Constituinte não era central na campanha eleitoral. Era uma questão que interessava mais a setores acadêmicos, universidades e organizações como a OAB, mas não mobilizava a população. O foco do PMDB era conquistar governos estaduais, Assembleias Legislativas e o Congresso, e conseguiu. Houve sim alguns documentos e propostas elaboradas por partidos, como o PMDB e o PT, mas muitos eram textos acadêmicos e acabaram superados pelo próprio processo. Como não havia um projeto prévio, a Constituição foi feita “de baixo para cima”, com subcomissões, comissões, sistematização e, por fim, o plenário. Algumas diretrizes partidárias influenciaram, mas, por exemplo, a ordem econômica acabou não sendo muito modificada. Na prática, houve uma atuação legislativa mais criativa do que orientada por compromissos assumidos anteriormente.
Havia uma mobilização popular com participação dos movimentos sociais na redação da nova Carta?
Sim, houve participação popular, inclusive, o regimento interno da Constituinte previu a possibilidade de apresentação de propostas populares. E o Fórum Nacional de Movimentos Sociais apresentou uma quantidade significativa de emendas. Mas, na prática, os grupos que atuavam no processo eram corporativos, servidores públicos, Poder Judiciário, Ministério Público e corporações econômicas. Todos defendendo seus próprios interesses. Ou seja, não havia uma representação ampla e unificada da sociedade civil. Eram setores organizados que pressionavam por vantagens para seus grupos. Era uma representação “setorial”, e não propriamente “popular”, no sentido coletivo.
Nos bastidores da Constituinte, havia setores que tentavam manter elementos do regime anterior. Quais foram as principais resistências que o senhor e os demais relatores enfrentaram durante a formulação do texto constitucional?
Houve duas grandes disputas. Uma sobre o tempo do mandato do presidente Sarney e outra sobre o sistema de governo — presidencialismo ou parlamentarismo. Sarney havia sido eleito para um mandato de seis anos. Havia quem defendesse a redução para cinco (como Sarney concordava), e outros, como Mário Covas, defendiam quatro anos. O PMDB ficou dividido. Havia um grupo “sarneysta” e outro alinhado a Covas e Ulysses. O parlamentarismo chegou a ser aprovado na Comissão de Sistematização, mas foi derrotado no plenário. Houve uma tentativa de acordo entre Sarney e o senador José Aristodemo Pinotti, que previa a adoção de um modelo semiparlamentarista com período de estabilidade para o gabinete e mandato de cinco anos, mas Mário Covas rejeitou. No fim, prevaleceram o presidencialismo e o mandato de cinco anos. As eleições acabaram sendo marcadas para 1989.
Uma das grandes inovações da Constituição de 1988 foi a ampliação dos direitos sociais e a descentralização do poder, fortalecendo estados e municípios. Essa era uma diretriz clara desde o início ou foi uma evolução natural ao longo dos debates?
Já havia uma tendência clara nesse sentido. Nós vínhamos de um regime altamente centralizador, o regime militar, em que o poder estava todo concentrado na União. Os estados e municípios dependiam completamente dos recursos federais. A proposta era justamente desconcentrar o poder. E foi isso que ocorreu. Havia uma frase muito usada pelo doutor Ulysses: “A gente não nasce na União, a gente não nasce nos estados. A gente nasce nos municípios”. Essa lógica deu origem à ideia do chamado federalismo solidário, fortalecendo o papel dos entes subnacionais e descentralizando orçamento, competências e políticas públicas.
A Constituição de 1988 foi chamada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães. Passados 40 anos, o senhor acredita que ela ainda cumpre esse papel? Que aspectos da Carta deveriam ser preservados a todo custo e quais poderiam ser revistos?
O que chamamos de “Constituição Cidadã” são os direitos fundamentais — os direitos individuais, sociais, econômicos e trabalhistas. Esses devem ser preservados, isso não se mexe. O restante, no entanto, está sujeito à conjuntura. Como não houve projeto prévio, cada grupo se mobilizou para incluir suas demandas na Constituição. Isso a tornou extensa e, em alguns pontos, excessiva. Cheguei a defender uma “lipoaspiração constitucional” — ou seja, a retirada de dispositivos que não deveriam estar na Carta. Mas essa proposta não prosperou. A parte tributária, por exemplo, é imensa, parece um Código Tributário. A ordem econômica também foi bastante alterada nos anos seguintes, especialmente durante o governo Fernando Henrique, com privatizações e reformas. Mas o espírito de cidadania permanece no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, nos direitos sociais e trabalhistas. Isso é o que Ulysses Guimarães exaltava e que continua atual.
O Brasil viveu recentemente tentativas de ruptura democrática, como os episódios de 8 de janeiro de 2023. Como o senhor enxerga esses movimentos à luz da experiência da redemocratização e da construção da Constituição de 1988?
Esse tipo de disputa sempre existiu. Mas, no caso recente, houve uma polarização muito forte dos dois lados — do grupo de Lula e do grupo de Bolsonaro. Uma radicalização muito forte, que continua até hoje. A vitória de Lula foi apertada com apenas 1,8% de diferença. Ele contava vencer com folga no primeiro turno, mas Bolsonaro cresceu no segundo. Foi uma vitória dura. Muita gente votou em Lula por rejeição ao Bolsonaro, especialmente pelo que ocorreu na pandemia. Depois da eleição, surgiu aquele movimento em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar. Os militares, no entanto, não tinham como retirar aquelas pessoas porque o presidente da República — ainda Bolsonaro — era o comandante das Forças Armadas e era um movimento favorável a ele. Após a diplomação do presidente Lula, houve um incidente perto do Tribunal Eleitoral e depois veio à posse do presidente. Foi quando esse grupo percebeu que não tinha obtido o que pretendiam, ou seja, a intervenção dos militares, principalmente do Exército. O Exército estava pela legalidade. A não ser os que estavam no governo, como agora se fala das articulações na tentativa de golpe de Estado. No meu ponto de vista aquilo foi uma espécie de catarse, uma bagunça, porque não tinha como eles pensarem em Golpe de Estado com um grupo de manifestantes, que fizeram quebra-quebra sem armas. Eles não tinham atrás de si força nenhuma, não tinham um exército. Atribuo aquilo como uma catarse pela frustração de não terem obtido o resultado que pretendiam, que era a intervenção dos militares para fazer o golpe. A frustração de não terem obtido o que desejavam levou àquela bagunça no dia 8 de janeiro. Mas ali não havia armas, não havia força real por trás. Aquilo foi mais um ato de desespero do que um golpe real. E, mesmo assim, a democracia resistiu.
A democracia brasileira tem resistido a desafios institucionais?
A democracia está resistindo, está sobrevivendo. A Constituição de 1988 conseguiu gerir o impeachment de Collor e depois de Dilma. Não houve nem obstrução no sentido da ilegalidade. Embora o PT tenha um versão de que houve golpe contra a Dilma, mas esse não é o termo correto, pois isso não tem sentido jurídico nenhum, pois o impeachment dela ocorreu dentro da legalidade, tanto é que o presidente do Senado, ná época, quem julgou foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça de Lula. Era uma crise política e foi resolvido nos termos da legalidade.
Como o senhor avalia a necessidade de proteção das instituições e da Constituição diante do atual cenário político?
Vivemos um momento de disfuncionalidade entre os poderes. O Congresso avançou muito no controle do orçamento, especialmente com as emendas parlamentares. Isso aumentou seu poder sobre o Executivo, que hoje tem de negociar mais do que no passado. Um exemplo, a quantidade de vetos do presidente Lula que têm sido rejeitados — muito mais do que em governos anteriores. Além disso, o governo atual não apresentou um projeto de nação. Lula, durante a campanha, disse que não precisava apresentar propostas porque já havia governado antes. Isso enfraqueceu a agenda do Executivo. No primeiro e segundo mandato do presidente Lula, o Congresso não tinha esse empoderamento das emendas parlamentares e da capacidade que tem de influenciar nas políticas do governo. O Judiciário também está em um papel ampliado, mas isso se deve à omissão da própria política. O Supremo não age por iniciativa própria — é provocado por partidos, sindicatos e derrotados parlamentares. Hoje, a política perdeu a capacidade de resolver seus conflitos e transfere tudo para o Judiciário, que acaba decidindo sobre políticas públicas — o que não deveria ser sua atribuição.
Se o senhor pudesse enviar uma mensagem às novas gerações que não vivenciaram a transição democrática, qual seria a principal lição do processo Constituinte que deveria ser lembrada hoje?
A inexistência de conflitos. A principal lição é a convivência com a divergência. Naquela época, havia diálogo. Quando havia divergência, negociava-se e se buscava uma solução política. Hoje, não se tem diálogo porque se tem uma radicalização muito forte e se produziu no processo político o ódio. Ou seja, os adversários em 1987, 1988 eram chamados de adversários políticos e hoje são chamados inimigos políticos. Hoje, não há uma capacidade de negociação política. Isso destrói o espaço de negociação. Quando o ambiente político deixa de negociar, transfere seus conflitos para o Judiciário — e isso distorce o funcionamento das instituições. Precisamos acabar com o ódio na política e retomar as discussões e questões nacionais. Hoje, grande parte do debate é conjuntural, já mirando 2026.
Para finalizar, dentro da sua experiência e liderança política, como o senhor vê o papel da oposição atualmente?
Se perdeu a capacidade de fazer política, de fazer a política no sentido que sempre tivemos no Brasil, que é o diálogo, nas negociações. Hoje não vemos isso. Hoje vemos só ódio. Os políticos se tornaram midiáticos. Hoje quando se tem uma discussão de uma matéria não vemos grande parte dos deputados com o seu celular na mão, falando para seus eleitores, para as redes sociais e não atendendo a discussão real do problema. Hoje, os políticos estão mais satisfeitos ao afirmar suas posições, do que criar soluções.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Mariana Campos/CB/DA Press