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Masculinidade está sendo desafiada e ressignificada, diz psicanalista

Durante milênios, a humanidade viveu sob a lógica de uma cultura patriarcal, fundada...

Durante milênios, a humanidade viveu sob a lógica de uma cultura patriarcal, fundada na crença de que uma força superior dava poder a determinados grupos majoritariamente associados ao gênero masculino. Essa visão consolidou a masculinidade como o centro da autoridade, relegando às mulheres e outros grupos sociais papéis de submissão e marginalização. No entanto, a psicanalista Maria Homem pontua esse modelo começou a ser questionado nos últimos anos e a masculinidade está sendo desafiada e ressignificada.

Segundo ela, o reconhecimento da igualdade perante a lei, entre homens e mulheres, e o avanço de pautas ligadas a gênero, raça e orientação sexual exigem uma reconfiguração da forma como as relações humanas são pensadas e vivenciadas.

“Para alguns grupos que detinham todo o poder, é necessário reequacionar os privilégios e também perceber que, de certo modo, estão ganhando em outros aspectos, ao se aproximarem de uma verdade mais complexa do que somos. Homens têm afetos, têm emoções. Mulheres têm racionalidade, ocupam espaços públicos e privados. Só que essa transformação é muito profunda, porque nossas identificações ainda repetem lugares imaginários e fálicos de muito poder para o masculino”, diz Maria Homem ao Correio.

A psicanalista é autora dos livros Coisa de Menino e Coisa de Menina, com o também psicanalista Contardo Calligaris.

Leia a entrevista completa a seguir:

Poderia comentar sobre a construção histórica da identidade masculina?

Vivemos durante séculos, para não dizer milênios, em uma cultura que hoje chamamos de patriarcal. Uma ideia estruturada na crença de que existiria uma força externa ao grupo, normalmente transcendental ou divina, responsável por organizar as dinâmicas na terra. A partir desse modelo, se construiu a lógica de que algumas pessoas estariam mais próximas desses deuses ou desse Deus e, por isso, ocupariam o lugar do governo, do poder. Foi assim que se fundaram reinados, papado e império dos faraós.

Esses escolhidos eram considerados os melhores, os virtuosos, os grandes líderes. Numa lógica de “sangue diferente”, “sangue azul”, nobre, de uma raça superior. Ou seja: seres de uma natureza distinta. E esse lugar foi, em larga medida, associado ao gênero masculino. Essa é a matriz que sustenta o pensamento patriarcal.

Como o modelo tradicional de masculinidade está sendo desafiado e ressignificado diante das transformações nas relações de gênero?

Estamos vivendo, há cerca de 150 anos, o questionamento dessa perspectiva patriarcal. Hoje somos todos iguais perante a lei: há equidade entre homens e mulheres, há o reconhecimento do direito igual para todas as formas de desejo, de raça, de pele, de etnia, de origem, de classe. Isso exige que adaptemos a nossa mente a essa mudança. Para alguns grupos que detinham todo o poder, é necessário reequacionar os privilégios e também perceber que, de certo modo, estão ganhando em outros aspectos, ao se aproximarem de uma verdade mais complexa do que somos. Homens têm afetos, têm emoções. Mulheres têm racionalidade, ocupam espaços públicos e privados. Só que essa transformação é muito profunda, porque nossas identificações ainda repetem lugares imaginários e fálicos de muito poder para o masculino. Alguns não conseguem fazer esse luto, essa travessia, essa elaboração e sentem a transição como perda. E, muitas vezes, quando o ser humano não está em um lugar de tranquilidade e confiança, quando se sente humilhado pelo outro, pelo sistema, ou sofre bullying, pressão, violência… tende a entrar no espiral de reproduzir essa humilhação, esse bullying, essa opressão sobre os mais frágeis.

Como a cultura de gênero impacta a violência contra a mulher e quais caminhos você aponta para transformar esse cenário?

O processo que descrevemos acima também se expressa na lógica da violência: a violência doméstica, a violência contra a mulher nas ruas, contra as crianças, contra os grupos mais vulneráveis. É uma forma de descarga, de escape, de compensação imaginária: “pelo menos em algum lugar quem manda sou eu”. Quando há inversão ou igualdade dos papéis culturais historicamente construídos, isso soa, para quem estava no poder, como uma humilhação. E, se esse sujeito dispõe da força física, pode recorrer a ela nesse momento, diante de uma nova imagem no espelho, que não corresponde à versão de si mesmo que gostaria de ver.

Há diversos grupos nas redes sociais chamados de masculinistas que propagam misoginia, como os redpills e os incels. E nesses grupos, além de adultos e jovens, há adolescentes. Quais impactos dessas subcomunidades on-line nesses menores?

O reflexo desse novo cenário é justamente esse reacionarismo, esse backlash: a tentativa de reiterar lugares masculinistas, como os grupos legendários, redpills, que são formados, em grande parte, por jovens que vivem um lugar de humilhação social, econômica, de não representação no campo do trabalho ou diante do feminino. No processo de se tornarem homens, eles se percebem sem lugar. Não está claro qual a identificação possível ou a afirmação do que são. E o “novo homem”, uma outra masculinidade, também não aparece como polo de identificação disponível.

Diante disso, há uma espécie de retorno ao passado, uma tentativa de se apegar a velhos modelos. Mas esses modelos também não funcionam mais, porque não correspondem ao caldo mental e cultural em que vivemos hoje. Essas subcomunidades on-line, essas bolhas simbólicas e imaginárias, têm um impacto grande: oferecem identificações imaginárias desse homem forte, poderoso, “durão”, legendário, reconstituindo, assim, o lugar fálico. Só que esse homem bruto, que mistura força física com violência, já não funciona. Esse modelo tradicional de masculinidade está sendo desafiado e ressignificado diante das transformações de gênero. É disso que falamos aqui, o tempo todo, em todos os lugares e que já entrou no cotidiano, na micropolítica da vida diária.

As mulheres, de algum modo, estão todas mais letradas sobre suas possibilidades de serem sujeitos. Há um letramento psicossocial em curso na sociedade, e as mulheres avançaram mais rapidamente nesse processo. Os homens, aos poucos, também estão chegando a essa consciência. Como eu e Contardo Calligaris refletimos nos livros Coisa de Menina? e Coisa de Menino? (Papirus Editora), os homens talvez estejam percebendo que se trata de uma mudança no jogo. Mas não é apenas perda: há perdas e ganhos. E eu diria, até, mais ganhos, para todos nós, como cultura e como civilização. Precisamos reaprender a deixar a paixão, o flerte, a atração e o interesse pulsarem entre todos nós. Quaisquer que sejam nossas identificações desejantes, nossos gêneros, o tipo de pessoa que gostamos, o tipo de corpo e nos excita, podemos ter uma postura que seja, acima de tudo, humana.

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense

Foto: Divulgação/Vitor Rombino

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