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Magistrados e advogados defendem mais espaços no Judiciário do país

A baixa representatividade de pessoas negras nos espaços de poder se reflete também...

A baixa representatividade de pessoas negras nos espaços de poder se reflete também na Justiça. Segundo dados do Painel de Monitoramento Justiça Racial, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 81.203 pessoas negras no Judiciário brasileiro. O número representa 26,82% do total de 302.810 pessoas, entre magistrados e servidores. No ranking de magistrados por tribunal de cada unidade federativa, o DF fica em 4º lugar com 4,36. O Correio conversou com pessoas negras em cargos estratégicos no Judiciário, que falaram sobre os desafios a serem enfrentados rumo à justiça racial no Brasil. 

O subdefensor público-geral, Fabrício Rodrigues, 41, estudou em escola pública durante toda a vida e cursou direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI), na qual entrou sem cotas. “Infelizmente, sou uma exceção. Dos 49 alunos que entraram comigo no curso de direito, todos eram brancos e estudantes de escolas particulares. Eu era o único negro e educado em escola pública”, recorda. “Eu demorei para me reconhecer como homem negro, isso mudou com o meu letramento acadêmico. Percebi que o racismo está no dia a dia e também institucionalizado”, observa.

Para Fabrício, é dever de todos buscar uma educação antirracista. “A postura antirracista passa pelo letramento da população. Por exemplo, é comum o uso de expressões e termos que têm uma carga pejorativa histórica, isso precisa acabar. Adotar um discurso antirracista não é suficiente, é preciso deixar de lado o vocabulário racista também”, reflete.

Ainda sob a ótica do letramento, o subdefensor acredita que este deve acontecer desde a educação básica. “O país está vivendo um novo momento, a questão racial está sendo encarada com mais transparência e mais resistência. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas se o letramento começar desde cedo, melhor. A mudança tem que vir da base, estamos atrasados nisso”, avalia. “Conscientizar pessoas adultas é possível, mas a mudança só virá mesmo quando jovens e crianças tiverem um letramento racial efetivo. Eu acredito, sim, que podemos transformar a sociedade”, completa.

Prerrogativas do cargo

“Somos minorias visíveis”, descreve o juiz-auxiliar da presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Joacy Dias Furtado, 53 anos, fazendo referência a um termo usado pelo governo do Canadá para caracterizar as pessoas não brancas e não indígenas. “Somos poucos em alguns espaços de poder e essa discrepância é ressaltada pela cor da nossa pele”, analisa o magistrado, que também é juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP).

Formado em direito, história e filosofia, Joacy conta que a prerrogativa do cargo acaba gerando uma blindagem contra o preconceito. “Não é uma blindagem total, eu não estou imune, ninguém está imune a racismo. O preconceito está enraizado na teia da sociedade”, lamenta.

“A minha presença em um cargo de poder como o de juiz é representativa no sentido de justiça equitativa, porque as outras pessoas que têm uma história parecida com a minha ou assemelhada podem se espelhar na minha presença e na minha permanência. Eu acho que isso inspira mais do que palavras”, afirma o magistrado. 

O juiz destaca ainda que não gosta de ser considerado uma ‘exceção’. “Essa expressão nos remete a ter furado uma bolha que todos deveriam furar. A equidade de oportunidades deve estar disponível para todos, tem que ser regra e não exceção”, defende.

Justiça racial

Procuradora da Fazenda Nacional e assessora especial de Diversidade e Inclusão da Advocacia-Geral da União (AGU), Claudia Trindade, 57, enxerga a pouca representatividade de pessoas negras nas carreiras jurídicas como um reflexo da dificuldade de acesso desta população aos concursos públicos. 

“Estes concursos exigem anos de dedicação exclusiva. Além disso, estudos apontam que há dificuldades no preenchimento das vagas das cotas nos concursos das carreiras jurídicas, o que implica um déficit de representação da maioria da população do país nos órgãos que vão tomar decisões que afetam a vida de todos”, comenta.

A procuradora acredita que, para que haja um equilíbrio racial no Judiciário, é preciso mais do que ações afirmativas das políticas de cotas nos concursos de ingresso. “É preciso que a atuação se dê antes, com ações reparatórias que prepare e incentive meninas e meninos a se verem nesses lugares que lhes parecem tão impossíveis”, sugere. “Um exemplo disso é o Programa Esperança Garcia, implementado na AGU e que oferece bolsas em curso preparatório para pessoas negras”, cita. 

Para Claudia, a justiça racial se faz com ações que visem corrigir injustiças históricas. “A Justiça não pode fechar os olhos para as questões enfrentadas pela população negra em um pais cuja sociedade se funda numa cultura herdada de uma sociedade escravocrata”, descreve. “Justiça racial se faz lendo as leis feitas por uma maioria branca, com um olhar que considere essas diferenças da população real do nosso país. Justiça racial é a busca ativa pela equidade racial, enfrentando o racismo em suas dimensões histórica, cultural, institucional e estrutural,  promovendo condições reais de igualdade”, destaca.

Reparação histórica

“Equidade racial genuína é uma forma de reparação histórica”, descreve a ouvidora racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), Victória Cavaçani, 28. “É preciso entender a história da escravidão, do colonialismo e o racismo estrutural presente na nossa sociedade para ofertar às pessoas negras uma equidade de oportunidade real”, ressalta.

Na atuação também como advogada e palestrante Victória relata que, em virtude do cabelo crespo, já sofreu discriminação em espaços de poder. “Já entrei em sala de audiência e me confundiram com a parte, não me leram como advogada, ainda que eu estivesse portando a minha carteira da OAB e usando o bótom”, compartilha. “O racismo acontece sutilmente, as pessoas vão deslegitimando a nossa presença nos espaços”, acrescenta.

Victória acredita que o caminho para a reparação é oferecer condições de partida iguais para negros e não negros seja no Judiciário ou seja na sociedade de modo geral. “A linha de chegada pode até ser a mesma, mas a de partida nunca é igual. É necessária uma transformação institucional para que a gente reveja as estruturas que perpetuam exclusões. É preciso incluir formação antirracista dentro do judiciário, além de investir na base, nos alunos negros que estão cursando direito ou estudando para tal, com bolsas, mentorias, preparação para concursos, etc”, opina. “São dívidas históricas que precisam ser reparadas”, conclui.

Um debate necessário

O Correio promove, na próxima quarta-feira, o debate “Histórias de Consciência: mulheres em movimento”. O evento acontece no auditório do jornal às 14h e é gratuito. O debate acontecerá em torno de pautas relacionadas à trajetória de resistência e valorização da mulher negra.

A iniciativa reúne informação e memória para exaltar o protagonismo de mulheres negras do Distrito Federal e de todo o Brasil. Durante os painéis, o público poderá conhecer trajetórias inspiradoras de resistência e transformação, além de refletir sobre o papel das mulheres negras em diferentes áreas da sociedade.

De acordo com dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED-DF), em 2023, 60,8% das pessoas ocupadas se autodeclararam pretas ou pardas, o que mostra o papel ativo desse grupo na sustentação da economia local.

A ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana, destacou a importância do debate. “O Correio renova seu compromisso com a democracia inclusiva que o Brasil precisa adotar. Vamos participar e fortalecer a luta antirracista e contribuir para a construção de um território absolutamente livre do racismo, do machismo de qualquer forma de preconceito”, reforça. “O evento vai reunir pessoas que aliam saberes da academia e da cultura a reafirmação da necessidade de que um Brasil digno é um Brasil livre do racismo”, finaliza. 

Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

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