Referência mundial na defesa da democracia e no combate à impunidade, Luis Moreno Ocampo foi responsável, em 1985, por levar à Justiça os militares que estiveram à frente da ditadura na Argentina (1976-1983), uma das mais brutais do continente. Como promotor no julgamento histórico da Junta Militar, tornou-se símbolo do combate aos crimes de Estado. Mais tarde, de 2003 a 2012, consolidou sua trajetória como o primeiro procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, atuando na responsabilização de ditadores e criminosos de guerra.
Nesta entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, Ocampo alerta para um cenário global em transformação: a humanidade vive, segundo ele, uma “guerra digital”, em que as redes sociais fragmentam a sociedade, e algoritmos substituem a verdade por narrativas polarizadas.
O ex-procurador, jurista e escritor analisa a ascensão da extrema-direita na América do Sul, critica a manipulação política das redes e defende a cultura, o cinema e a música como instrumentos essenciais para fortalecer a democracia. Ocampo também destaca o papel do Brasil, que, após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, reafirmou a força da lei e do Estado de Direito.
Quarenta anos depois que o senhor trabalhou para levar os ditadores argentinos à prisão, vemos na Argentina um presidente, Javier Milei, que relativiza a ditadura. No Brasil, um grupo que tentou dar um golpe de Estado está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal. De que forma o senhor enxerga esses retrocessos?
Em nossos países, existem opiniões diferentes. Na Argentina, até o presidente Milei defende processar antigos líderes guerrilheiros. Mas os argumentos que justificam isso surgiram nos julgamentos da Junta Militar e na Comissão da Verdade. Esses dois processos transformaram o debate: não se trata mais de eliminar inimigos, mas de usar a Justiça para lidar com os problemas. Há um novo paradigma: a Justiça. Diferentes setores da sociedade discutem se devemos processar mais guerrilheiros ou militares, mas todos aceitam que a solução está dentro da Justiça. No contexto brasileiro, vejo o país cumprindo um papel importante ao mostrar a força da lei. O Brasil conseguiu lidar com o ataque do 8 de Janeiro e garantir o funcionamento do Estado de Direito. Isso é fundamental. Por isso, acredito que o Brasil precisa manter sua liderança na Corte Internacional de Justiça e nas discussões jurídicas globais.
A que o senhor atribui o avanço da extrema-direita na América do Sul?
Estamos diante de um conflito global. A tecnologia conecta o mundo, mas seguimos organizados como Estados nacionais. Não existe um sistema político global. Por isso, as pessoas escolhem líderes nacionais para se protegerem. E é assim que voltamos ao tribalismo.
Comparando a transição democrática no Brasil e na Argentina: nós anistiamos golpistas e torturadores, vocês, não. Nós, brasileiros, cometemos um erro?
Brasil e Argentina tiveram experiências muito diferentes. A ditadura na Argentina foi muito mais brutal. No Brasil, foram episódios isolados. Na Argentina, houve uma campanha sistemática: milhares de pessoas foram sequestradas e assassinadas. O país inteiro virou uma cena de crime. O Exército argentino se transformou em um grupo de assassinos. Essa é uma diferença histórica fundamental.
Se nós, brasileiros, tivéssemos punido os militares, como fizeram vocês, isso teria afastado a caserna da cena política?
A esquerda e a direita precisam aceitar que a lei é o centro. A lei serve para proteger a vida e combater a corrupção. O respeito pela lei não é algo simples, nem para a extrema-esquerda, nem para a extrema-direita. Por isso, é necessário garantir que os setores moderados da sociedade tenham influência para assegurar o respeito às leis.
O senhor considera que os erros da esquerda, especialmente os casos de corrupção, tanto no Brasil quanto na Argentina, ajudaram a extrema-direita a crescer e se fortalecer?
Tudo depende da forma como interpretamos o conflito. Se o encaramos como uma guerra, o adversário deve ser eliminado. Mas, se o vemos como crime, é necessário julgamento. Foi isso que fizemos com (o general Jorge Rafael) Videla e (o almirante Emilio Eduardo) Massera. Em uma guerra, matar a vítima é considerado normal. O julgamento da (primeiria) Junta (Militar, de 1976 a 1980) devolveu à sociedade argentina algo essencial: a sensibilidade. A Justiça humaniza.
Por que o senhor acredita que, mesmo após tantos relatos históricos, ainda existam pessoas que defendem regimes militares?
Porque os relatos históricos precisam tocar as emoções. A experiência argentina, desde 1985, mostra que bons filmes, carregados de emoção, fazem as pessoas entenderem a importância da lei. A Justiça não pode ser algo técnico, reservado aos advogados. É necessário usar o cinema, a música, a cultura. A cultura protege a democracia.
Por que os relatos históricos não têm sido suficientes para defender a democracia?
Porque as redes sociais mudaram tudo. Antes, eram jornais e filmes que definiam as narrativas. Hoje, eles competem com as redes sociais, que são binárias. Só vemos quem concorda ou não conosco. Os algoritmos nos dividem. Por isso, a propriedade do Twitter (hoje X), do TikTok e de outras plataformas se tornou um tema central da política mundial.
Como o senhor avalia o domínio da extrema-direita nas redes sociais? Qual o impacto disso para a democracia?
Hoje, escolher uma rede social é uma decisão política. Mais do que regular, precisamos aprender a usar as redes para o benefício da comunidade e da democracia. Esse é o foco do projeto que estamos desenvolvendo na Universidade de São Paulo (USP): entender como colocar a inteligência artificial (IA) a serviço das pessoas.
Algumas pessoas que participaram do ataque às sedes dos Três Poderes brasileiros, em 8 de janeiro de 2023, fugiram para a Argentina. Essas pessoas representam risco de organizar células extremistas no seu país?
Eu não sabia que isso estava acontecendo. Seria interessante saber quem são esses brasileiros e o que estão fazendo na Argentina. O que vejo é que há redes globais sendo formadas. Algumas são voltadas para a política. Podemos observar muitos exemplos de pessoas que estão organizando redes globais.
Como o senhor acredita que a América Latina deve se relacionar com os Estados Unidos e com lideranças de perfil autocrático como Donald Trump?
Vivemos num mundo global que ainda não possui um sistema global de governança. A América Latina pode liderar. Por isso, o projeto que estamos desenvolvendo em São Paulo busca criar uma nova ordem global desde o Sul, uma ordem inclusiva, que envolva outras regiões, incluindo os Estados Unidos. Mas é essencial que seja uma ordem igualitária.
Como o senhor analisa as ditaduras da Venezuela, Nicarágua, El Salvador e Cuba?
Os problemas são graves. A Venezuela perdeu a legitimidade. (Nicolás Maduro) perdeu eleições e esconde esse fato, como acontece na Nicarágua. Mas vejo um risco ainda maior: a guerra entre Estados. O conflito entre Venezuela e Guiana (sobre a região de Essequibo, que o governo de Caracas diz ser território venezuelano) é o exemplo mais perigoso. O Brasil está desempenhando um papel de moderação (do conflito entre os dois países). Mas precisamos garantir que a região abrace a paz. Um conflito armado destruiria o projeto de integração latino-americana. Evitar isso é fundamental.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Divulgação/ICC-CPI