Com a chegada do dia dos namorados, é comum ver declarações de amor multiplicando-se em toda parte. Mas, em meio ao clima de romance, tem coisa que parece afeto… mas não é. Frases como “sinto sua falta o tempo todo” ou “quero fazer tudo com você” podem até soar apaixonadas, mas, quando ditas cedo demais ou de forma insistente, acabam virando sinal de alerta. Às vezes, o que parece carinho esconde uma tentativa de controle. Esse comportamento tem nome: “love bombing” ou “bombardeio de amor”. E pode ser o começo de uma relação abusiva, disfarçada de paixão.
Essa é uma forma sutil e também perigosa de manipulação emocional. Ocorre quando, logo no início do relacionamento, a outra pessoa demonstra um afeto exagerado: são elogios em excesso, declarações intensas, presentes fora de hora e planos grandiosos demais para tão pouco tempo de convivência.
Emoção com exageros
Foi o que aconteceu com Gabriel Almeida (nome fictício), de 20 anos. Ele conheceu um rapaz por um aplicativo de relacionamento no fim de 2024. Em poucos dias, o relacionamento evoluiu rapidamente. Logo, Gabriel passou a receber presentes e a fazer planos para o futuro com o rapaz. “Ele estava sendo carinhoso, não parecia errado, para que eu me preocupasse”, lembra. No entanto, na mesma velocidade em que tudo começou, acabou. “Um dia ele disse que precisava conversar… e falou que não estava pronto para um relacionamento”.
É difícil para a vítima identificar que está em uma situação de controle emocional. Sandy Luiza, psicóloga clínica, ressalta que, no momento do flerte, é normal que haja um excesso de elogios, promessas e as declarações realmente podem ser intensas. No entanto, se somadas a outros comportamentos, podem ser vistas como abusivas e merecem atenção.
“Querer estar junto o tempo todo faz parte do processo da paixão, mas, quando é exagerado, pode criar um ciclo de dependência emocional disfarçada de cuidado. Então, a pessoa começa a criar ali um isolamento daquela relação, em que é só você e ela. Mas quando essa dinâmica vai te levando a se isolar, a oscilar entre excesso de afeto e também comportamentos controladores e agressivos, vai gerando uma confusão emocional”, ressalta a psicóloga.
Ela ainda ressalta que, como essa manipulação é feita de forma gradual, a pessoa não consegue perceber que está em uma relação manipulada, e se sente pertencente a ela. Portanto, o excesso de afeto, aquele que chega a sufocar, pode ser um sinal.
Sinal vermelho
O alerta para o love bombing acende quando o encanto vira um problema. Segundo o psicólogo clínico Vinicius Mota, é preciso ficar atento quando o relacionamento parece estar “acelerado demais”. O entusiasmo pode mascarar sinais de alerta, como cobranças excessivas, exigência de reciprocidade imediata, ciúmes disfarçados de cuidado.
“É fundamental não romantizar comportamentos controladores. Ciúmes não é sentimento, é controle”, afirma o especialista, que também destaca que mudanças bruscas de humor e comportamento podem ser indícios de manipulação emocional. “Quando a reciprocidade não vem na medida esperada, o ‘love bomber’ pode agir de forma ríspida, distante e abusiva”, ressalta.
Há também o outro lado da história. Caroline Mendes (nome fictício), 22 anos, mostra a dinâmica de quem pratica o ‘love bombing’, mesmo sem perceber. Ela relata que, após sair de um relacionamento importante, conheceu um novo rapaz e, sem intenção real de compromisso, passou a falar que tinha sentimentos por ele. Porém, enquanto ele acreditava estar vivendo uma relação séria, ela mantinha outros envolvimentos. “Ele chegou a dizer para conhecidos que queria formar uma família comigo”, lembra. Hoje, Caroline reconhece que houve uma tentativa de controle. “Acho que era uma forma de querer controlar a situação”.
Liberdade invadida
O love bombing pode até parecer, à primeira vista, só um excesso de afeto, mas, para o professor de direito do Ibmec Thiago Sorrentino, se torna uma questão jurídica quando começa a invadir a liberdade do outro. Segundo ele, esse tipo de comportamento pode evoluir para algo mais sério, como perseguição, ameaça ou violência psicológica, especialmente quando o afeto exagerado vira uma forma de controle.
“A evolução para violência psicológica se materializa quando as técnicas manipulatórias se intensificam e diversificam, assumindo formas mais insidiosas de controle, tais como o isolamento progressivo da vítima de sua rede de apoio social e familiar, a imposição de vigilância constante sob o pretexto de cuidado excessivo, a alternância calculada entre demonstrações de afeto e episódios de humilhação ou ridicularização”, ressalta.
Da paixão ao crime de perseguição
O love bombing, em muitos casos, é apenas o começo. Quando o excesso de atenção dá lugar à obsessão, o que parecia romantismo se transforma em controle e pode evoluir para algo mais grave. O crime de stalking é um dos possíveis desdobramentos desse tipo de comportamento.
Em alguns casos, a perseguição está disfarçada em relações marcadas por violência doméstica, como no feminicídio que vitimou Rosemeire Rosa Campos, de 46 anos, em agosto de 2024, no Gama. Rosemeire era constantemente monitorada por seu ex-marido por meio de um sistema de e-mail que permitia obter sua localização quase em tempo real. Apesar de não haver boletins de ocorrência prévios por violência, Rosemeire vivia um relacionamento conturbado com brigas, violência psicológica e perseguição, segundo familiares e conhecidos.
E casos como o de Rosemeire não são isolados. Segundo dados da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), os registros de stalking têm crescido nos últimos anos: foram 1.514 ocorrências em 2021, 1.925 em 2022, 2.758 em 2023 e 920 apenas nos cinco primeiros meses de 2024.
De acordo com Karina Duarte, delegada adjunta da DEAM II, o crime de perseguição (stalking), previsto no artigo 147-A do Código Penal, é um tipo penal relativamente novo, trazido por uma alteração legislativa de 2021. Ele exige que a conduta do agressor seja repetida — não basta um episódio isolado para configurar o crime. Por isso, segundo ela, é essencial que a vítima consiga reunir elementos que comprovem essa repetição. A delegada também destaca a importância de preservar provas, já que, no momento da denúncia, são elas que viabilizam a investigação.
“Tudo vai depender do caso concreto. Se houver testemunhas, é importante que a vítima indique quem são essas pessoas. Se o crime foi praticado pelo celular, é importante que a vítima não se desfaça dessas provas. Se for o caso de um rastreador, o ideal é que o equipamento seja levado à delegacia para ser periciado”, afirma a delegada.
Para o advogado criminalista Israel Fonseca Rosa, stalking não é mais apenas um incômodo — é crime. E a vítima não precisa esperar que a situação evolua para uma ameaça direta ou agressão física. “A simples repetição de comportamentos invasivos, que causem medo ou perturbem a paz, já configura stalking”, afirma. No caso de mulheres perseguidas por ex-companheiros ou dentro de qualquer contexto de violência de gênero, o especialista destaca que é possível procurar uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), mas qualquer delegacia tem o dever de registrar a ocorrência.
Artigo — Amor ou abuso?
Por Cristina Alves Tubino, assessora no Superior Tribunal de Justiça
A violência que surge em relacionamentos abusivos não se restringe à física, sexual, moral ou patrimonial. Pode ter fundo psicológico e ser cometida de forma tão sutil que, por alguns, só é percebida quando tarde demais.
Excesso de “cuidado”, de “amor” ou “romantismo” pode não se caracterizar como uma forma de violência que vem sendo recentemente estudada e chamada de “love bombing” que pode ser, livremente traduzido, como “bombardeio de amor”, que é uma forma de abuso emocional caracterizado por excesso de elogios, comunicação de sentimentos exagerados, diversos presentes, inclusive não desejados, que visam envolver uma pessoa por meio de manipulação.
O psicólogo americano Charlie Huntington, especialista em Psicologia Social pela Universidade de Denver descreve o “love bombing” como uma estratégia utilizada especialmente em relacionamentos narcisistas e abusivos com a finalidade de criar dependência emocional e controlar a parceira.
Aqueles atos acima mencionados podem fazer com que a pessoa que recebe toda essa atenção acabe se privando de convivência com seus amigos e família, isolando-se no relacionamento e perdendo a percepção de que aquele não é saudável e sim uma etapa de um ciclo de violência que se inicia.
Frases como “quero estar contigo todo o tempo”, “não consigo viver sem você”, “quero fazer tudo contigo”, exemplificativamente, podem traduzir não o amor saudável e bem intencionado mas, ao contrário, caracterizar sinais de um relacionamento abusivo que se inicia e de comportamento que pode vir a caracterizar ato de violência previsto na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e crimes previstos na legislação penal.
O excesso de afeto — aquele que chega a sufocar — pode se caracterizar, por exemplo, como crime de perseguição, previsto no artigo 147-A do Código Penal, popularmente chamado de stalking, e que se caracteriza como a ação de perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio físico ou virtual, ameaçando a integridade física, psicológica da vítima, invadindo sua liberdade e privacidade e impedindo até sua livre locomoção.
Pode se caracterizar, ainda, outro crime, o de violência psicológica, previsto no artigo 147-B do Código Penal que é direcionado exclusivamente a mulheres vítimas de condutas que possam lhe perturbar, causar dano emocional, prejudiquem seu pleno desenvolvimento uma vez que controlam suas ações, comportamentos, crenças, decisões, por exemplo.
É essencial que se esteja atento a sinais que representem desproporcionalidade entre a conexão das pessoas, tentativas de isolamento e afastamento de família e amigos, atos de perseguição etc, a fim de que se evite relacionamentos abusivos que possam evoluir para crimes mais graves, com violências que possam causar até mesmo a morte.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Maurenilson Freire