Por trás do canteiro de obras do Planalto Central, durante a construção da capital, viviam comunidades que, ainda hoje, permanecem esquecidas por parte da população do Distrito Federal. Para a pesquisadora, professora e escritora Antonia Samir, autora do livro O quilombo que gerou Brasília, desconstruir o discurso de que a cidade foi erguida “onde não havia ninguém” é tornar visível a contribuição de saberes tradicionais e práticas culturais desses povos, como dos moradores de Mesquita, quilombo localizado a 40km do Plano Piloto, na Cidade Ocidental (GO).
O livro, resultado de uma tese de doutorado desenvolvida na Universidade de Brasília (UnB), aborda os acontecimentos silenciados e a história contada a partir da perspectiva do quilombo Mesquita, composto majoritariamente por pessoas negras.
“Minha ancestralidade é o fio condutor deste livro. Por ser filha de pai nascido na região, sempre me incomodaram as manifestações de estigmatização em relação ao povo preto de Luziânia (local onde a comunidade nasceu), tanto pela omissão na implantação de políticas públicas, como pelo próprio morador de Brasília, que invisibilizava essas pessoas”, explica Antonia.
Hoje com 64 anos, a escritora e pesquisadora recorda, com sorriso no rosto e brilho nos olhos, os momentos vividos, quando criança, na comunidade. “Eu e meus irmãos saíamos da Cidade Livre, onde nasci, em cima do caminhão do meu pai, e sempre fomos muito bem recebidos no Mesquita. Lá, gostávamos de catar cajuzinho-do-cerrado e aproveitar as festas tradicionais, como a Folia do Divino Espírito Santo”, diz. A lembrança das canecas esmaltadas e dos pedidos de bênção é viva em sua memória.
Não por acaso, o livro foi lançado inicialmente na comunidade, durante a celebração do Dia de Nossa Senhora da Abadia, no último dia 15. Padroeira do quilombo, a santa é associada a milagres como a cura de doenças, a proteção de famílias e a multiplicação dos alimentos. No festejo, manifestações artísticas como a catira e a dança da raposa, animam foliões que chegam acompanhados de uma multidão. Em maio, Mesquita completou 278 anos de história, cultura e tradição.
Solo sagrado
A ocupação da região onde se localiza o quilombo ocorreu a partir do século 17, como consequência da busca por ouro no Arraial de Santa Luzia, atual Luziânia. Antes território de uma de fazenda, chamada Mesquita — em função de o proprietário ser o sargento-mor português José de Mesquita — o local deixou de ser um ponto de mineração e deu espaço à economia de subsistência, devido ao declínio da produção de ouro.
“Com o abandono da propriedade pelo sargento-mor José de Mesquita, permaneceram apenas ex-escravizados e seus descendentes. As mulheres escravizadas que cuidavam da casa do senhor passaram a ser ‘as donas’ da região”, detalha um trecho do livro O quilombo que gerou Brasília.
A terra, no entanto, não era considerada “propriedade” e, como alternativa econômica, foi desenvolvido o plantio de marmelo, que resultou em um doce cristalizado considerado a marca registrada do local.
Sobre as vivências do quilombo, o líder comunitário Walisson Braga da Costa, 27, resume: “Em Mesquita, o mesmo solo em que nascemos é o mesmo solo que nasce nossa água e nosso alimento, é o mesmo onde construímos nossa casa para viver alegrias com nossas famílias. E nesse mesmo solo é para onde a gente volta e onde enterramos os nossos que se foram. Esse solo é sagrado e importante”.
Walisson, que é fotógrafo e servidor da Secretaria de Políticas para Quilombolas, do Ministério da Igualdade Racial, faz parte da sétima geração de moradores da região e, assim como Antonia, destaca a invisibilização que a comunidade sofreu no nascedouro da capital.
“Fala-se muito sobre os candangos que vieram do Nordeste, mas o quilombo foi um dos primeiros locais a ‘fornecer’ mão de obra para a construção de Brasília. Isso sem contar a concessão de alimentos e água para o canteiro de obras. Apesar de grandioso, o projeto da capital também foi racista, discriminatório e xenofóbico”, lamenta o jovem.
Resistência
Além da preservação de saberes culturais e tradicionais, que contam com o uso de plantas medicinais e com o trabalho de parteiras, a comunidade é responsável por conservar o cerrado, que, como uma via de mão dupla, cuida e é cuidado.
Algumas espécies vegetais nativas encontradas são o pequizeiro, a sucupira, o jatobá e o ipê. Do Ribeirão Mesquita, um dos afluentes mais extensos da margem direita do Rio São Bartolomeu, a população obtém a água necessária à produção agropecuária.
“Meu papel, enquanto jovem, é alertar outras pessoas da minha idade que a continuidade dessa história (da comunidade) é responsabilidade nossa. É preciso existir e resistir em defesa do quilombo”, ressalta Walisson. “Costumo falar para outros jovens que saiam para estudar e se capacitar, mas que voltem e deem retorno ao local em que nasceram e cresceram, evitando que a nossa história se perca”, completa.
A área pretendida pela comunidade quilombola do Mesquita abrange a extensão de 4 mil hectares e, atualmente, conta com cerca de 1,4 mil quilombolas, conforme informou o líder comunitário, com base no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O quilombo que gerou Brasília: os acontecimentos silenciados e a história contada a partir da perspectiva do quilombo Mesquita
Autora: Antonia Samir
Páginas: 283
Editora: Appris
Onde adquirir: site da editora Appris
Por Letícia Mouhamad do Correio Braziliense
Foto: Ed Alves/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense