Outros posts

“Justiça vai prestigiar probidade e moralidade nas eleições”, diz ex-ministro do TSE

A Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal (STF) terão de analisar o...

A Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal (STF) terão de analisar o impacto da Lei Complementar 219/2025, sancionada com vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para que seja aplicada nas eleições de 2026. O texto que entrou em vigor altera a Lei das Inelegibilidades com mudanças nas regras de moralidade e combate à corrupção eleitoral estabelecidas pela Lei da Ficha Limpa em 2010. O partido Rede Sustentabilidade entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), em que pede a suspensão integral das alterações feitas na Lei da Ficha Limpa, abrindo, assim, a discussão. Relatora do caso, a ministra Cármen Lúcia pediu explicações ao Congresso.

Em entrevista ao Correio, o advogado Carlos Bastide Horbach, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), explica que a lei apresenta pontos positivos, como a instituição do requerimento de declaração de elegibilidade, por meio do qual será possível antecipar a avaliação da regularidade das candidaturas, o que reduz o excesso de litigiosidade no período eleitoral. Mas, segundo ele, ajustes necessários não impedem que, aos olhos da sociedade, a lei seja vista como uma “manobra legislativa para reabilitar políticos condenados”.

O jurista afirma que alguns temas, como a retroatividade dos benefícios previstos na lei, serão causa de debates, principalmente porque os vetos do presidente Lula estão relacionados ao impacto das novas regras nos processos contra políticos já julgados e os que estão em tramitação. Significa avaliar se as regras do marco temporal para contagem da pena de inelegibilidade atingem os casos de políticos que estão fora das disputas eleitorais.

Segundo Horbach, a Justiça Eleitoral e o STF têm prestigiado mais a moralidade nas eleições do que a retroatividade de regras mais benéficas aos candidatos. Outro aspecto a ser dirimido: quem tem múltiplas condenações por improbidade administrativa relacionadas a fatos conexos tem pena máxima de 12 anos de inelegibilidade. Mas para a análise dessa conexão cabe uma interpretação.

É nesse contexto de dúvidas que políticos afastados da vida pública, como o ex-governador José Roberto Arruda, começam a se apresentar como pré-candidatos, fiando-se num viés favorável à nova lei. Mas o ex-ministro Carlos Horbach antevê um processo difícil. “Entram nessa equação a especial proteção que a Justiça Eleitoral tem dado à moralidade nas eleições, as razões de veto das normas relativas à retroação e precedentes do STF que têm relativizado a retroatividade de leis mais benéficas, sem falar na controvérsia sobre a conexão dos fatos que ensejaram as múltiplas condenações”.

Como o senhor avalia o contexto político e jurídico que levou à aprovação da Lei Complementar 219/2025, que alterou a Lei das Inelegibilidades?

A avaliação do contexto em que se deu a aprovação da nova lei complementar não pode ser dissociada da compreensão de outro contexto relevante, que é o da aprovação da Lei da Ficha Limpa em 2010. Após o julgamento do “Mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal, houve um grande movimento na sociedade brasileira contra a corrupção eleitoral, que resultou na aprovação da Lei da Ficha Limpa. Assim, é natural que essa legislação, sendo uma reação a um dos maiores escândalos de corrupção da história do Brasil, fosse bastante severa, limitando em muitos aspectos o direito de ser votado, aquilo que os juristas chamam de cidadania passiva. Com isso, desde logo houve manifestações apontando excessos na lei e a necessidade de revisão de suas disposições. Esse debate, de certo modo, foi amadurecendo ao longo dos 15 anos de vigência da Lei da Ficha Limpa e resultou na recente aprovação da Lei Complementar 219. Essa constatação técnica de que a lei necessitava de ajustes não afasta, porém, a percepção que tem a sociedade de que se está diante de uma manobra legislativa para reabilitar políticos condenados, o que é negativo e dificulta o debate sobre essa matéria.

Houve uma motivação legítima de aperfeiçoamento do sistema ou predominou um viés de flexibilização da Lei da Ficha Limpa?

É difícil avaliar as reais motivações que propiciaram a aprovação de qualquer proposição legislativa, tanto que há muito tempo não mais se leva em consideração a vontade do legislador quando se interpreta uma norma. É certo que havia discussões sérias sobre a necessidade de correção de excessos e de uniformização, no sentido do aperfeiçoamento do sistema. Sendo igualmente correto afirmar, de modo muito objetivo, que houve uma flexibilização do modelo, permitindo que políticos inelegíveis possam agora discutir sua situação concreta e, eventualmente, superar essa inelegibilidade. Esse aspecto da flexibilização, aliás, tem sido reforçado pelas notícias que divulgam as pretensões eleitorais de políticos envolvidos em grandes escândalos de corrupção, que passaram a se apresentar, a partir da vigência da Lei Complementar 219, como “ficha limpa”, causando uma reação naturalmente negativa por parte da sociedade.

Na sua visão, a Lei Complementar 219/2025 representa uma revisão necessária de excessos da Lei da Ficha Limpa ou um retrocesso no combate à corrupção eleitoral?

A LC 219/2025 traz inegáveis avanços para o processo eleitoral. Um de seus aspectos menos divulgados é a instituição do requerimento de declaração de elegibilidade, por meio do qual será possível antecipar a discussão sobre a regularidade das candidaturas, diminuindo o excesso de litigiosidade no período eleitoral. E todas as alterações legislativas que geram maior uniformidade e menos exceções são, em tese, salutares. Considerando esses pontos e confiando na diligente interpretação que a Justiça Eleitoral fará dos novos dispositivos, eu prefiro acreditar que teremos um resultado de aperfeiçoamento, com a manutenção dos valores centrais da Lei da Ficha Limpa, focada no combate à corrupção eleitoral.

Durante sua passagem pelo TSE, o senhor acompanhou debates sobre a aplicação rígida da inelegibilidade. Essas novas regras trazem mais segurança jurídica ou abrem brechas para relativizar decisões já consolidadas?

No período em que estive no TSE, a jurisprudência se manteve firme no sentido de conferir a maior efetividade possível à Lei da Ficha Limpa, como aliás tem feito a Justiça Eleitoral desde 2010. Na dúvida, a solução prevalente sempre tem sido a de privilegiar a moralidade e a integridade das eleições, evitando que a legitimidade do regime democrático seja de algum modo afetada pela participação de indivíduos notoriamente envolvidos em escândalos de corrupção. Essa orientação foi, inclusive, reafirmada nas eleições de 2024, quando o TSE interpretou a vedação constitucional à utilização eleitoral de “organização paramilitar” para barrar candidatos com vínculos notórios com milícias e com crime organizado. Considerando esse histórico, não é provável que a Justiça Eleitoral adote entendimentos que abram brechas para relativizar quadros já consolidados.

A LC 219/2025 altera o marco inicial e final da contagem do prazo de inelegibilidade. Essa mudança está em sintonia com o princípio da segurança jurídica e com a jurisprudência consolidada do TSE e do STF?

A LC 219 trouxe inovações ao regime jurídico das inelegibilidades, especificamente no que toca a seus termos inicial e final. As inovações, por si só, não podem ser consideradas contrárias ao princípio da segurança jurídica ou à jurisprudência. Até mesmo porque a jurisprudência foi construída a partir de um determinado marco legal, que foi agora alterado. É natural que novos textos legais ensejem alterações na jurisprudência, sem que isso configure quebra da segurança jurídica. Questão distinta é a insegurança decorrente de dúvidas quanto à aplicação imediata das novas normas e seus impactos nas inelegibilidades em curso. O veto do presidente da República aos dispositivos que garantiam a aplicabilidade imediata já é um indicativo de solução nesse tema, ainda que caiba à Justiça Eleitoral definir de modo definitivo a questão, sendo certo que essa definição será pautada pela segurança jurídica e também pela moralidade.

A nova lei fixa um teto para o somatório das inelegibilidades em casos de múltiplas condenações. Como o senhor vê essa limitação? Ela é compatível com o caráter moralizador da Ficha Limpa? Como funciona na prática?

Os períodos de inelegibilidade correspondem ordinariamente a dois ciclos eleitorais, considerando os mandatos de quatro anos. Partindo desse referencial, os 12 anos fixados pela LC 219 como limite para a inelegibilidade decorrente de múltiplas condenações por improbidade administrativa acabam por compreender três ciclos eleitorais, o que representa um aumento. Sem dúvida que essa opção do legislador é benéfica para políticos com múltiplas condenações, mas acaba configurando um período de afastamento razoável, para evitar punições excessivas, que se estendam indefinidamente.

Do ponto de vista técnico, a lei trouxe avanços ao tratar de condenações conexas e de situações em que há múltiplas decisões sobre o mesmo fato? Ou ainda há lacunas na interpretação que exigirão uniformização pelo TSE?

Sem dúvida que existe uma lógica legislativa na opção pelo tratamento unificado de ações ajuizadas pelos mesmos fatos ou por fatos conexos, bem como nos casos de atos ímprobos conexos, de modo a se evitar uma situação injusta de dupla punição em decorrência da mesma irregularidade. Todavia, a caracterização dessa conexão ou da identidade dos fatos será sempre matéria controversa, sendo que caberá à Justiça Eleitoral, soberana na apreciação dos fatos a ela submetidos, a palavra final em cada caso concreto.

O senhor acredita que a aplicação imediata dessas novas regras pode gerar questionamentos no STF sobre retroatividade e violação de coisa julgada?

Sem dúvida. Tanto o STF quanto o TSE terão protagonismo na pacificação das discussões acerca da aplicabilidade imediata. E não só em relação a esse tema específico, mas também ao alcance das inovações da LC 219 como um todo. Basta lembrar que já foi ajuizada uma ação direta de inconstitucionalidade pela Rede, impugnando a nova lei complementar.

Como o senhor avalia que o TSE e os TREs vão lidar com pedidos de registro de candidatura de políticos que, até 2024, estavam inelegíveis sob a regra antiga?

Eu acredito que a Justiça Eleitoral permanecerá firme na sua jurisprudência protetiva da integridade dos processos eleitorais, interpretando a nova legislação em consonância com o postulado constitucional de proteção da probidade administrativa e da moralidade para o exercício de mandatos eletivos.

O senhor prevê um aumento expressivo de judicialização nas eleições de 2026 em razão dessa nova lei?

Como eu disse, a instituição do requerimento de declaração de elegibilidade pela LC 219/2025 tem o potencial de reduzir a litigiosidade, sendo importante acompanhar sua implantação, para que atinja esse objetivo. No que toca aos demais aspectos da lei, não me parece, porém, que haverá um aumento expressivo da judicialização. O que provavelmente teremos é a apreciação de alguns casos rumorosos, relacionados a políticos envolvidos em grandes escândalos de corrupção, que atrairão a atenção da sociedade e dos meios de comunicação.

Há o risco de que partidos usem a LC 219/2025 para reabilitar políticos que estavam fora do jogo eleitoral. Como o senhor vê essa questão?

Esse risco sim existe, mas faz parte do jogo democrático e das estratégias eleitorais dos partidos. Em 2018, por exemplo, um dos grandes partidos insistiu até quando possível no registro de um candidato notoriamente inelegível, certamente buscando aumentar suas chances eleitorais em diferentes disputas. Esse mesmo cenário se teve, em 2022, em relação a outra agremiação. Tais movimentos são normais na disputa eleitoral, especialmente quando envolvem lideranças com alta popularidade. Cabe aos partidos a responsabilidade de avaliar a elegibilidade de seus filiados e à Justiça Eleitoral o dever de julgar esses registros com total celeridade, de modo a evitar que candidaturas inviáveis afetem o processo eleitoral como um todo.

Políticos como o ex-governador José Roberto Arruda, condenado em segunda instância em 2014 por improbidade administrativa, mas sem trânsito em julgado, tornam-se elegíveis?

Não se pode afirmar de modo categórico que esse ou aquele político está, ou não, inelegível sem um exame pormenorizado dos processos em que houve condenações. Eu desconheço os detalhes dos processos envolvendo o ex-governador e, por isso, seria temerário afirmar que ele está, ou não, em condições de concorrer em 2026. O certo é que a Justiça Eleitoral será cuidadosa na interpretação das inovações, valorizando, como tem feito, a moralidade nas eleições. Além disso, candidatos que tenham dúvida quanto à sua capacidade eleitoral e também seus partidos podem, a qualquer tempo, apresentar à Justiça Eleitoral o requerimento de declaração de elegibilidade de que antes falei. Essa medida é altamente recomendável, para evitar que controvérsias se estendam desnecessariamente, a ponto de tumultuar os pleitos. No caso específico, essa discussão certamente não será resolvida sem dificuldades, uma vez que entram nessa equação a especial proteção que a Justiça Eleitoral tem dado à moralidade nas eleições, as razões de veto das normas relativas à retroação e precedentes do STF que têm relativizado a retroatividade de leis mais benéficas, sem falar na controvérsia sobre a conexão dos fatos que ensejaram as múltiplas condenações.

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense

Foto: Divulgação

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp