De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do IBGE, 55,5% da população brasileira se declara preta ou parda. Ou seja, a maioria do país é negra. Essa realidade demográfica, no entanto, está longe de se refletir na composição da Justiça brasileira.
Hoje, o Judiciário conta com 302.901 profissionais, sendo 283.884 servidores e 19.017 magistrados. Desse total, apenas 81.264 pessoas se identificam como negras, sendo 78.564 servidores e apenas 2.700 juízes, segundo o Painel de Monitoramento Justiça Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Isso significa que apenas 14% da magistratura brasileira é composta por pessoas negras.
A taxa de magistrados negros por 100 mil habitantes também revela a desigualdade: são apenas 2,39 juízes negros, enquanto entre os brancos a taxa sobe para 18,64 — quase oito vezes mais.
A advogada Ilka Teodoro, ex-administradora do Plano Piloto e cofundadora da Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, afirma que a presença de juízes negros ainda é “extremamente baixa” no país. Por isso, segundo ela, o mês da Consciência Negra deve reforçar a importância de ampliar tanto o acesso à Justiça quanto a presença de pessoas negras no sistema jurídico.
Na visão da advogada, esses dados são alarmantes porque não existe imparcialidade absoluta. “Cada julgador carrega sua história de vida, sua visão de mundo e seus vieses. Quando o Judiciário é composto majoritariamente por homens brancos, a visão que prevalece é limitada”, diz. Ela defende que quanto mais diversidade houver na magistratura, mais qualificada será a Justiça, “com olhares plurais, sensíveis e capazes de compreender diferentes realidades sociais”.
Em concordância, José Gomes de Araújo Filho, juiz auxiliar da Presidência do CNJ, afirma que a baixa presença de pessoas negras na magistratura fragiliza a legitimidade democrática do Judiciário. O magistrado explica que, em um país majoritariamente negro, a ausência de representatividade racial comunica distância e dificulta que a população reconheça o sistema de Justiça como um espaço verdadeiramente seu.
Segundo ele, o CNJ reafirmou recentemente as políticas de cotas e consolidou a pauta de equidade racial como política permanente, reconhecendo que essa lacuna não é apenas estatística, mas um deficit democrático que precisa ser corrigido de forma estruturada e contínua.
O ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos Roberto Caldas ressalta que a presença de mulheres e pessoas negras no Judiciário é necessária para tornar o sistema de Justiça mais conectado à realidade da população e, portanto, mais justo. Na visão dele, sentenças só podem ser verdadeiramente justas quando refletem a sociedade que julgam.
O cenário se torna ainda mais desigual quando se observa a segunda instância e os tribunais superiores. De acordo com o painel, 85,7% dos juízes nesses tribunais são brancos (2.697). Já pretos e pardos somam apenas 10,4% (318 magistrados). O restante se divide entre juízes amarelos (1,6%, com 49 representantes), indígenas (com apenas um magistrado e proporcionalmente 0%) e aqueles que não informaram ou não declararam raça (2,6%, equivalentes a 83 pessoas).
Para Ilka, essa disparidade não é acidental. “Quanto mais alto se sobe na carreira, mais rigoroso é o filtro e esse filtro também é racial”, afirma. “Se na base já temos pouca representatividade negra, no topo ela praticamente desaparece”, completa.
A advogada explica que isso ocorre porque a ascensão depende de articulação política, networking, indicação e convivência em ambientes dos quais pessoas negras, muitas vezes, são excluídas desde o início.
Segundo Roberto Caldas, isso ocorre porque a população brasileira ainda não percebe o quanto sua cultura é excludente e discriminatória. De acordo com ele, a ideia de meritocracia aplicada às carreiras jurídicas se apoia em critérios moldados pela elite, não pela realidade da maioria da população brasileira, que é negra e enfrenta dificuldades, inclusive, para acessar direitos básicos.
“As provas e os cursos preparatórios são pensados para a vivência de uma elite que representa menos de 5% da população. Precisamos de ações afirmativas reais, inclusive, com pessoas negras e mulheres nas bancas examinadoras, para garantir equilíbrio no preenchimento das vagas. Outros países já avançaram nesse tema. Por que o Brasil ainda não conseguiu?”, questiona.
Roberto destaca ainda a falta de mulheres nos espaços de maior poder do Judiciário. “Quando olhamos para a cúpula, vemos quase exclusivamente homens. Parece que às mulheres não é permitido sequer sonhar com esses espaços. O Judiciário, que deveria ser a instância da Justiça, acaba reproduzindo desigualdades, o que é incoerente com sua própria missão”, lamenta.
De acordo com José Gomes de Araújo Filho, o CNJ tem atuado em três frentes centrais para promover a equidade racial no Judiciário. A primeira é a implementação de ações afirmativas, como a Resolução 203/2015, que estabelece 20% de cotas raciais nos concursos para magistratura e servidores; e a Resolução 336/2020, que reserva 30% das vagas para estagiários. Ambas foram recentemente prorrogadas pelo Plenário do CNJ, reforçando o compromisso institucional com a diversidade.
A segunda frente é focada na formação e na mudança cultural. Nesse eixo, destaca-se o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, que determina a capacitação permanente de magistrados e servidores para reconhecer e enfrentar desigualdades estruturais no exercício da função jurisdicional.
A terceira envolve diagnóstico e governança, por meio do Pacto Nacional pela Equidade Racial e do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial. Esses mecanismos articulam tribunais, universidades e entidades da sociedade civil para produzir dados, monitorar avanços e propor novas normas e políticas.
A mensagem, segundo ele, é inequívoca: a equidade racial deixou de ser apenas um projeto e passou a constituir uma política de Estado dentro do sistema de Justiça.
Diferenças entre Tribunais
A Justiça Eleitoral é o ramo com maior percentual de magistrados negros (18,1%), seguida pela Justiça do Trabalho (15,9%), Justiça Estadual (13,1%), Justiça Federal (11,6%) e Justiça Militar (6,7%).
No recorte estadual, o Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP) apresenta o maior índice de magistrados negros (7,07%), enquanto o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) tem o menor: apenas 0,53%.
Na Justiça do Trabalho, o TRT da 20ª Região (SE) lidera com 1,09% de magistrados negros ou pardos, enquanto o TRT da 15ª Região aparece na última posição, com 0,23%. No Tribunal Superior do Trabalho, não há nenhum magistrado negro. Já na Justiça Federal, o TRF da 2ª Região registra o maior percentual (0,29%), e o TRF da 6ª Região o menor (0,14%).
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: editoria de arte







