Com cinco décadas como professor de direito internacional, o jurista Francisco Rezek acredita que vivemos um limiar na geopolítica mundial. “Chegamos ao fundo do poço”, diz. Nesta entrevista ao Correio, ele confessa não encontrar no passado, recente ou remoto, “algum cenário mais infame que este que estamos a viver nos últimos dois anos”, marcado pelo desprezo à Organização das Nações Unidas.
Se há alguma esperança, para ele, é o fato de estarmos próximos a um ponto de saturação geral perante “a injustiça, a arbitrariedade, o sacrifício insuportável da dignidade coletiva”. Nesse sentido, ele afirma que devemos agradecer a Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. “Esse sociopata rompeu com a hipocrisia que até pouco tempo atrás marcava o comportamento do governo norte-americano frente ao resto do mundo. Trump, insuperável na sua transparência, rasgou a fantasia.”
Rezek, que ocupou postos como procurador da República, ministro das Relações Exteriores, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) em duas ocasiões e juiz da Corte Internacional de Justiça, acredita que o tarifaço imposto ao Brasil por Trump pode resultar em outras parcerias comerciais e um novo destino para a economia brasileira. “É de países como a China, a Índia, a África do Sul, que o Brasil pode esperar que estejam ao seu lado na construção de um mundo mais decente”, afirma.
Para ele, não há como imaginar uma saída brilhante para o impasse imposto por Trump, incomodado com a ascensão do Brics e animado por sua própria vocação imperialista. “Não há o que negociar. Não há vontade de negociar por parte de quem deu origem ao problema. Nossa boa vontade é evidente, e tem sido testemunhada pelo mundo exterior. O tempo dará remédio a essa patologia”, destacou.
Na condição de professor de direito internacional há mais de 50 anos, como o senhor enxerga a atual ordem geopolítica mundial? Para onde ela está caminhando?
Tento encontrar no passado, remoto ou recente, algum cenário mais infame que este que estamos a viver nos últimos dois anos. Não há nada, nem de longe, parecido com isso, nem mesmo ao longo das duas grandes guerras do século XX. Não é a primeira vez em que a Organização das Nações Unidas se encontra desprezada e humilhada por governantes de países-membros, mas isso não havia acontecido antes de modo tão assumido, tão agressivo e arrogante como agora. Não dá mais para ensinar direito internacional mentindo aos estudantes que existe uma ordem jurídica global regida pelo direito, pela igualdade soberana entre as nações, pelo respeito aos compromissos externos da cada soberania, pela busca do ideal de justiça para toda a raça humana. Mas, veja, é possível que alguma esperança ilumine o horizonte neste momento desastroso, já que estamos próximos de um ponto de saturação geral ante a injustiça, a arbitrariedade, o sacrifício insuportável da dignidade coletiva. Chegamos ao fundo do poço, o que significa que alguma coisa melhor deve nos esperar a partir de agora.
Qual será o papel dos Estados Unidos, da União Europeia, da China e, particularmente, do Brasil?
Acho que temos todos uma dívida de gratidão para com Donald Trump. Esse sociopata rompeu com a hipocrisia que até pouco tempo atrás marcava o comportamento do governo norte-americano frente ao resto do mundo. Trump, insuperável na sua transparência, rasgou a fantasia. A União Europeia (e aqui me refiro menos à Espanha e à Irlanda do que à Alemanha, à Grã Bretanha, à França e à Itália) paga hoje o preço de sua docilidade, de sua devoção ao parceiro do outro lado do Atlântico. E finge estar com medo de uma agressão russa — em que o próprio Trump não acredita, mas prefere agir como se acreditasse para não prejudicar o enriquecimento da indústria armamentista dos dois lados do Atlântico…
E a China?
A China, que a ‘mainstream media’ nos apresenta como uma não democracia, é hoje governada pelo mais equilibrado dos grandes estadistas da atualidade, além de ser o mais importante e confiável de nossos parceiros econômicos. Um país que ao longo de toda a história foi tantas vezes agredido e explorado, por diferentes nações, sem ter jamais agredido ou explorado ninguém. É de países como China, Índia e África do Sul que o Brasil pode esperar que estejam ao seu lado na construção de um mundo mais decente. Quanto a nós, e apesar dos defeitos de nosso cenário doméstico, de nossa sociedade partida ao meio, somos ainda, aos olhos de todos lá fora, um país sem remorsos dentro de um mundo cheio de remorsos. Uma bandeira limpa entre tantas bandeiras encharcadas de sangue.
Acredita que as medidas que vêm sendo adotadas — genericamente chamadas de “tarifaço” — são consistentes e coerentes com as convenções internacionais que regulam o comércio internacional?
Não, e o governo norte-americano tem consciência disso, mas não crê numa reação que possa de algum modo prejudicar seus interesses ou lesar sua economia. O próprio sistema da OMC prevê a adoção de ‘contramedidas’ pela vítima da tarifa abusiva, mas a adoção dessas medidas retaliatórias pode não convir, no cálculo final, ao país em questão. Refiro-me aqui aos demais países atingidos pelo tarifaço — não ao Brasil, a que o governo Trump deu um tratamento propositalmente perverso, por razões que nada têm a ver com a economia e a balança comercial.
Em sua opinião, o que motivou esse tratamento dado ao Brasil, e como deve o país reagir a partir de agora?
Ponha-se na cabeça de Donald Trump: ele não acha que os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, tenham sido mais graves do que aqueles de 6 de janeiro de 2021 — quando do ataque ao Capitólio, com algum derramamento de sangue, e ainda sob seu governo. Ele não entende, feita essa analogia, por que seu devoto Jair Bolsonaro enfrenta aqui consequências que ele próprio não teve que enfrentar perante a Justiça norte-americana. A partir daí, ele vinga seu irmão ideológico despejando sua cólera sobre o Brasil — visto, além do mais, como um foco de rebeldia política e econômica dentro de seu ‘backyard’, de seu quintal geográfico. A preocupação (não somente norte-americana) com a emergência do grupo Brics é mais do que evidente.
O que vem à superfície, então, é a vocação imperial de Donald Trump. Imperial mais no estilo de Calígula que de Trajano ou de Marco Aurélio. Ele não tem medidas, ele não conhece limites, e o sistema constitucional dos Estados Unidos permite essas extravagâncias — sempre que o presidente conte, no mínimo, com a tolerância da maioria no Congresso, e com a condescendência da Suprema Corte. Está visto que, pelo menos até agora, ele conta com as duas coisas. Contou com ambas até mesmo para espalhar o terror entre as mais notáveis universidades da América, e para intimidar todos os que levantaram suas vozes contra o despotismo, contra a agressão à cultura e à inteligência, contra o patrocínio do genocídio. Mas não há como imaginar uma saída brilhante para o impasse em que ele coloca o Brasil, de caso pensado e com dolo intenso.
E o que podemos esperar?
Veja: essas exclusões do patamar absurdo de 50%, em favor dos aviões da Embraer e do suco de laranja, não significam, de modo algum, um abrandamento da malfeitoria. Devem ter sido determinadas, na ponta do lápis, pela medida da relação custo-benefício, nada mais que isso. Não há o que negociar. Não há vontade de negociar por parte de quem deu origem ao problema. Nossa boa vontade é evidente, e tem sido testemunhada pelo mundo exterior. O tempo dará remédio a essa patologia, e do passar do tempo talvez resulte um quadro ainda melhor que o precedente, no que tem a ver com nossas parcerias comerciais e com o destino de nossa economia. Creio firmemente que, mantida a verticalidade da espinha dorsal deste país que não se curva perante nenhuma espécie de chantagem, o restante nos virá por acréscimo.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Pedro de Oliveira/Alep