Reportagem por Carlos Marcelo – Fernanda Torres tem experimentado, desde a estreia mundial de Ainda estou aqui no Festival de Veneza, o que sua mãe, Fernando Montenegro, chama de “a glória e seu cortejo de horrores”. A expressão, que também batiza o segundo romance da atriz carioca, descreve a rotina intensa de divulgação no exterior do filme de Walter Salles. O principal objetivo do momento é garantir a presença do longa-metragem na lista prévia das produções internacionais concorrentes ao Oscar, a ser divulgada na segunda semana de dezembro. “Estou fazendo zigue-zague no Atlântico, um negócio de maluco mesmo”, disse aos Diários Associados, no Rio de Janeiro, antes de embarcar para uma nova maratona de entrevistas e exibições, desta vez em Los Angeles.
Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui estreia na próxima quinta-feira e está em campanha para obter indicações nas categorias de melhor filme, direção, produção internacional, montagem (Affonso Gonçalves), roteiro adaptado (Murilo Hauser e Heitor Lorega, premiados em Veneza), ator coadjuvante (Selton Mello) e, claro, melhor atriz, o que faria Torres igualar o feito de Fernanda Montenegro — única brasileira a concorrer ao Oscar da categoria, em 1999, pela atuação em outro filme de Salles: Central do Brasil (a estatueta acabou nas mãos de Gwyneth Paltrow por Shakespeare apaixonado).
No livro de memórias Prólogo, ato, epílogo, Montenegro conta que, antes de ficar entre as cinco finalistas, teve de se submeter a uma “trabalheira sem fim”: almoços, jantares, entrevistas, presença em sessões em que haja possibilidades de votos a serem conquistados. “É isso mesmo: inacreditável. É como uma campanha política”, compara Fernanda Torres. “Você tem que fazer o filme ser visto nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, se possível na Ásia… Uma loucura! Estou vivenciando na pele a glória e seu cortejo de horrores”, brinca.
A atriz divulga sua atuação assombrosa como Eunice, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar após ser levado de sua casa no Rio de Janeiro, no início de 1971, e torturado dentro de um quartel. Depois de também ser detida e de não obter notícias concretas sobre o destino do marido, a mãe de cinco filhos iniciou uma campanha pública para o reconhecimento do crime, o que veio oficialmente somente depois do restabelecimento da democracia no país. “Foi uma mulher que implodiu por dentro”, resume a protagonista.
Fernanda Torres conta que se assustou ao ser convidada por Salles, com quem já havia trabalhado em Terra estrangeira e O primeiro dia, para protagonizar o longa que marca a volta do diretor à ficção no Brasil desde Linha de passe (2008). “Eu sabia que o Walter ia filmar essa história. Mas, quando ele me chamou para tomar um café, achei que era para me convidar para escrever um roteiro. Nunca nem cogitei esse papel. Primeiro porque a Eunice, quando as coisas acontecem, era dez, doze anos mais nova que eu”, lembra a atriz, nascida em 1965. “Também porque eu vinha trabalhando num outro registro, fazendo comédia na televisão.”
“Tomei um susto e até perguntei se ele tinha certeza. Quando ele confirmou, fui trabalhar”, conta. Por conta própria, fez um mês de preparação antes do início da leitura do roteiro com os outros atores e das filmagens, iniciadas em junho de 2023 e realizadas na mesma ordem dos fatos e do que aparece na tela, algo raro no cinema.
Da sequência de abertura até os minutos finais, é pela variação da intensidade do olhar de Eunice Paiva que Walter Salles narra a história de uma família luminosa e barulhenta subitamente mergulhada em sombras e silêncios. A opção do diretor, entre outros acertos, se concretiza plenamente por causa da força das atuações de Fernanda Torres e de, numa participação especialíssima, Fernanda Montenegro. “Tem uma China dentro da alma da mamãe. Ela realmente é a reunião de muita gente”, diz a filha, encantada com a forma que a mãe de 95 anos encontrou para interpretar Eunice nos últimos anos de vida, já acometida pela Doença de Alzheimer.
A protagonista de Ainda estou aqui traça paralelos entre as matriarcas das famílias Pinheiro-Torres e Paiva, ambas parentes de italianos. “A Eunice parece a minha mãe. É o mesmo tipo de mulher. Acho que a família da mamãe era mais operária do que a da Eunice, mas ambas eram formadas por mulheres muito intelectuais, inteligentes, mas ao mesmo tempo, donas de casa. Minha mãe servia o prato do meu pai quando ele se sentava na cabeceira da mesa. Sabe o código do casamento patriarcal? Era total na minha casa”, revela Fernanda.
Incluída nas relações de possíveis indicadas ao Oscar desde a aclamação em Veneza, Fernanda Torres foi homenageada no fim de outubro em Los Angeles pela Critics Choice Awards como um dos destaques do cinema latino. A performance como Eunice tem provocado elogios de publicações especializadas que costumam chamar atenção dos responsáveis pelas escolhas dos concorrentes ao prêmio da indústria norte-americana. A revista Variety classificou a performance como “soberba” e o site IndieWire afirmou que a atuação de Fernanda “é tão espetacular quanto sua filmografia sugere”.
Fernanda Torres ressalta que Walter Salles orientou os atores a não sublinhar a tragédia que acomete a família de Rubens Paiva depois do desaparecimento do ex-deputado. “Não tem uma música que sobe na hora da emoção, não tem a cena do grito. É igual a ela (Eunice). Nunca extravasa. Quem extravasa é o público”, pontua a atriz. “É o filme mais maduro do Walter, um devoto do cinema que limpou todos os truques”, complementa. “É um filme de silêncios e lacunas.”
Por Correio Braziliense
Foto: Video Filmes/Divulgação / Reprodução Correio Braziliense