O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa, a partir desta segunda-feira (22/9), da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, no pior momento da relação diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos. Além do constrangimento com a demora na emissão de vistos, e mesmo a restrição da circulação de autoridades brasileiras pelo país — como a imposta ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que desistiu de integrar a comitiva por considerar inconcebível que não pudesse andar livremente —, há o risco de que o governo norte-americano aproveite a presença do petista para anunciar mais sanções contra o Brasil, em resposta à condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, pelo Supremo Tribunal Federal, por chefiar a quadrilha que tentou dar um golpe de Estado.
Por causa dessa tensão, a comitiva presidencial está mais enxuta do que nos anos anteriores: restringiu a participação de assessores e convidados, como parlamentares, para reduzir as chances de desconfortos diplomáticos
Embora Lula não tenha adiantado os temas do discurso nas Nações Unidas, na sessão de terça-feira (23), a expectativa é de que trate de assuntos capazes de incomodar o presidente Donald Trump, que assume o parlatório na sequência: soberania, democracia, multilateralismo e guerras. E conforme se comenta nos bastidores do governo — o texto a ser lido será concluído horas antes da apresentação —, os recados serão firmes, mas sem que pareçam provocação ou desafio aos EUA.
Quando tratar de soberania, o presidente deixará claro não apenas que se trata de uma questão inegociável, como salientará que considera inaceitável a interferência de uma nação estrangeira em questões internas do Brasil — tal como fez Trump, ao impor uma tarifa de 50% às exportações para os EUA, por conta do julgamento de Bolsonaro. Além do mais, deve frisar que o Palácio do Planalto não tem qualquer capacidade de ingerência sobre o STF. Há a possibilidade de que alfinete o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que vem trabalhando contra o país na pretensão de livrar o pai da prisão.
No que se refere à democracia, Lula pode fazer uma provocação ao presidente norte-americano com a citação de reportagens como a da “The Economist”, que semanas atrás publicou um artigo afirmando que o Brasil dá uma lição ao planeta ao julgar — e condenar — personagens da política que tentaram dar um golpe. A matéria, inclusive, faz uma comparação entre os governos brasileiros e norte-americano e afirma que, hoje, é de Brasília que vem o mais vigoroso exemplo de defesa do Estado Democrático de Direito.
Tarifaço
Em relação ao multilateralismo, mais um recado a ser passado por Lula. Ao tratar do tema, deve frisar que as tarifas de importação que Washington vem impondo às nações são um fator de desestabilização das relações entre os países e enfraquecem parcerias históricas — como a de mais de 200 anos entre Brasil e EUA. Mas não ficará apenas na questão das trocas entre as nações: o presidente deve lembrar que organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde — o governo norte-americano deixará de integrar o colegiado a partir de janeiro do próximo ano —, vêm sendo paulatinamente enfraquecidos e desqualificados, algo que não prejudica os países mais ricos, mas, sim, os mais pobres, dependentes de políticas e programas implantadas por esses colegiados.
Há dúvida, ainda sobre esse tema, se Lula tratará do BRICS, cujas movimentações do bloco incomodam Trump. Se o fizer, há a possibilidade de que não se aprofunde muito no tema, mesmo porque a COP30, em novembro, em Belém, tem tudo para ganhar mais ênfase, ainda como assunto ligado ao multilateralismo. Espera-se que Lula não apenas reforce o convite às delegações de que participem do evento, mas, também, chamará a atenção para a necessidade de maiores investimentos e esforços concretos para a transição energética.
Lula deve ser firme, ainda, em relação às guerras, sobretudo a de Israel com o Hamas, em Gaza. As críticas têm tudo para desagradar as delegações norte-americanas e israelense, sobretudo porque espera-se do presidente palavras duras em relação ao desastre humanitário dos palestinos e os planos do governo de Benjamin Netanyahu para aquela faixa de terra. O tom será de condenação, crítica e de defesa enfática da formação do Estado palestino.
No que se refere à Rússia, porém, Lula tende a ser mais cuidadoso. Não apenas porque Vladimir Putin, o presidente russo, é um parceiro de BRICS, mas, também, porque deve se encontrar com o líder ucraniano Volodymir Zelensky — que indica, agora, estar disposto a contar com a participação de Brasília em uma eventual negociação de paz com Moscou.
Em eventos paralelos, porém, Lula tem tudo para subir o tom das críticas. O governo brasileiro deu uma primeira indicação disso, ontem, ao barrar os EUA da reunião “Democracia Sempre”, que acontecerá paralelamente à Assembleia-Geral. Os norte-americanos foram convidados para a reunião de 2024 do evento idealizado por Brasil e Espanha, mas, desta vez, estão fora. Isso, aliás, pode concretizar a ameaça do secretário de Estado, Marco Rubio, à Fox News, na segunda-feira passada, por conta da condenação de Bolsonaro. Ao atacar o STF, disse que “tem que haver uma resposta a isso. Nós teremos alguns anúncios na próxima semana, mais ou menos, sobre quais são os novos passos que pretendemos tomar. Mas o julgamento (de Bolsonaro) é só mais um capítulo de uma espécie de campanha de opressão judicial que tentou atingir empresas americanas e mesmo pessoas que operam dentro dos Estados Unidos”.
Reação
Na visão do analista de política internacional da Consultoria BMJ Vito Villar, é inevitável que as sanções americanas ao Brasil influenciem o discurso do presidente. Para ele, embora a presença nos EUA possa até abrir caminho para aplacar o mal-estar entre os dois países — sobretudo se Lula adotar um improvável tom ameno nos discursos —, a maior preocupação é com a possibilidade de novos ataques de Trump.
“Isso agravaria imediatamente a crise diplomática, provocando respostas firmes do Brasil e ampliando a distância política entre os dois países. Um gesto desse tipo teria grande impacto, não só nas relações bilaterais, mas, também, na forma como o Brasil buscaria apoio internacional para denunciar a postura norte-americana”, avalia.
O professor Haroldo Ramanzini Junior, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), por sua vez, destaca que mesmo países que se esforçam para agradar o governo Trump têm sido alvo de sanções, especialmente as tarifas. Ele observa que a posição brasileira em defesa das regras internacionais ganha maior importância no cenário atual.
“No contexto de ampliação da atuação transnacional de forças antidemocráticas, é muito importante que haja essa articulação de lideranças democráticas que buscam convergir esforços para regulamentar as plataformas digitais, combater a desinformação e fortalecer as instituições democráticas e o multilateralismo”, afirmou, destacando o evento para o qual os EUA não foram chamados a participar.
Ramanzini aponta ainda que, mesmo demonstrando disposição para negociar, como o governo federal tem feito, Lula não pode deixar de defender interesses brasileiros mesmo em Nova York. “As ações do governo têm sido na linha da defesa da soberania do país, do multilateralismo e das normas internacionais. O Brasil não pode abrir mão do seu interesse nacional para agradar o governo dos EUA ou para aplacar uma crise pela qual ele não é o responsável”, frisou.
Lula participa hioje da Conferência Internacional de Alto Nível para a Resolução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados, convocada por França e Arábia Saudita, onde fará a defesa do reconhecimento do Estado Palestino e deve disparar novas críticas aos israelenses. Na quarta-feira, Lula presidirá o “Democracia Sempre”, ao lado do presidente do Chile, Gabriel Boric, e do presidente da Espanha, Pedro Sanchéz. A iniciativa visa denunciar o extremismo político e defender o respeito às organizações internacionais.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ricardo Stuckert/PR