O aviso é curto e circula em um grupo de WhatsApp com pouco mais de 930 participantes. “Vigia aí, que eles já vieram duas vezes na minha casa.” A mensagem é uma entre milhares trocadas por presos do regime aberto e semiaberto monitorados em suas residências pela Polícia Penal. Beneficiados com o saidão, saídas quinzenais, trabalho externo, estudo ou prisão domiciliar, esses detentos estão sujeitos a um compilado de regras, incluindo restrições de horário. Na prática, o sobreaviso funciona como um salvo-conduto informal: depois do “confere”, ajustam deslocamentos fora do horário permitido, com baixo risco de abordagem (ouça abaixo áudios enviados por presos em grupos).
A população carcerária do Distrito Federal é a 11ª maior do país e soma 28.568 custodiados, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). O número coloca a capital à frente de 16 estados brasileiros, incluindo aqueles com índices historicamente mais altos de mortes violentas, como Bahia e Amapá. Do total, 16.455 estão em celas físicas, e 12.113 em prisão domiciliar com e sem tornozeleira eletrônica.
Benefícios penais para progressão de regime estão no centro das críticas ao sistema prisional. Por um lado, criteriosos associam as medidas ao aumento da sensação de insegurança e da reincidência. Defensores da política penitenciária, por outro lado, argumentam que a saída da prisão é um instrumento fundamental de ressocialização. O debate, no entanto, se dilui quando confrontado com a forma como essas medidas operam fora do papel.
O Correio recorreu à Lei de Acesso à Informação (LAI) e obteve dados exclusivos sobre o quantitativo de presos do DF e de 45 municípios goianos subordinados à Justiça da capital federal e submetidos à fiscalização domiciliar. Os dados mostram que 13.198 detentos — 11.246 do DF e 1.952 de Goiás — estão sob monitoramento em casa, determinado pela Justiça. O contingente reúne perfis distintos. Há custodiados do semiaberto lotados no Centro de Internamento e Reeducação (CIR), na Papuda, sem trabalho externo. Outros, do semiaberto, no Centro de Progressão Penitenciária (CPP), que estão autorizados a sair para trabalhar ou para estudar. Também fazem parte do grupo os do regime aberto. Todos precisam seguir as normas judiciais.
As exigências partem do básico. A começar pelo fornecimento do endereço onde o preso poderá ser encontrado durante o gozo do benefício. É estritamente proibido frequentar bares, casas noturnas ou espaços semelhantes, bem como portar substâncias ilícitas. Em despacho padrão, a Vara de Execuções Penais (VEP) dá ênfase aos limites da convivência: “Nunca andar em companhia de pessoas que se encontrem cumprindo pena, seja em regime aberto, semiaberto, fechado, ou livramento condicional, mesmo estando autorizadas a sair do presídio. Não andar acompanhado de menor de idade que esteja cumprindo medida socioeducativa”.
Controvérsia
Pouco antes das 7h de segunda-feira, a Rodoviária do Plano Piloto registrava um fluxo incomum. Familiares e amigos aguardavam a chegada dos detentos do regime semiaberto lotados no CIR, liberados para o saidão. A escolta das viaturas da Diretoria Penitenciária de Operações Especiais (Dpoe) anunciava a chegada de parte dos 1.689 custodiados em ao menos quatro ônibus.
A cena se repetiu nove vezes ao longo de 2025. O último saidão do ano terminou na sexta-feira. Os presos tiveram que se apresentar às respectivas unidades prisionais até as 10h. Em caso de descumprimento, há risco de regressão de regime.
Entre a liberação e o retorno obrigatório, o dia corre quase que sem restrições visíveis. Até as 18h, eles podem circular pela cidade, visitar familiares e resolver pendências. Depois, precisam estar em casa até a manhã do dia seguinte. Ao começo da noite, entram em cena os grupos de WhatsApp formados entre os próprios beneficiários. Quase todas as cidades do DF têm um grupo específico de aviso. As regras são claras: só deve “bipar” (avisar) se o confere realmente passou na “quebrada”. São vedadas conversas sobre outros assuntos, memes e vídeos.
“Acho que vou morrer. Tinha ido ali levar minha filha na pracinha e, quando voltei, os caras já estavam na minha porta”, disse, em áudio, um detento. O “morrer”, na linguagem do grupo, significa perder o confere e receber falta.
Os grupos funcionam como algo além de um sistema de alerta. Para alguns, servem como lembrete de horários e regras. Para outros, a mensagem opera como “passaporte”. Depois da apresentação obrigatória, voltam às ruas.
Conta que não fecha
O trabalho de fiscalização aos apenados é atribuído a 35 policiais penais da Diretoria de Fiscalização da Polícia Penal (DFPP). O efetivo é ampliado por aqueles que cumprem o serviço voluntário remunerado. O resultado é o aumento de 585% (240 policiais, em média, por mês) na atividade. No período de saidão, por exemplo, a vistoria começa às 18h e estende-se até a meia-noite, uma janela de seis horas.
Mesmo com o reforço do voluntariado, o desafio é aritmético. Nesse intervalo, as equipes precisam vistoriar os mais de 11 mil presos só do DF, além dos moradores de Goiás. Só Ceilândia, Planaltina e Samambaia concentram mais de 3,5 mil detentos sob fiscalização domiciliar, segundo dados obtidos pelo Correio via LAI. A tabela produzida pela Coordenação do Sistema Prisional mostra um total de 1.952 pessoas presas no DF que residem em Goiás. Na lista, entram cidades como Goiânia, Pirenópolis, Caldas Novas e Anápolis. É quase inviável o deslocamento dos policiais até esses municípios, relataram fontes ouvidas pela reportagem.
Critérios
Em novembro, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seape-DF) fiscalizou 14.952 endereços ativos de presos. O roteiro não se limita apenas às casas. As viaturas também se deslocam a estabelecimentos comerciais e empresas que mantêm vínculos empregatícios com os apenados autorizados ao trabalho externo. No DF, 1.483 custodiados estão em atividades laborais, sendo 1.283 pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap) e 203 por organizações privadas.
Os policiais seguem critérios técnicos de priorização para a fiscalização. A Coordenação do Sistema Prisional citou a situação jurídica do apenado, o histórico disciplinar, o risco individual, a necessidade de verificação e diretrizes judiciais. Segundo a Seape, para custodiados em prisão domiciliar há mais de 60 dias, as fiscalizações começam à meia-noite.
A lista de fiscalização domiciliar não inclui os presos com tornozeleiras eletrônicas, que são monitorados 24 horas por dia, durante toda semana, pelo Centro de Monitoração Eletrônica (Cime).
Três perguntas para
Três perguntas para Ana Paula Correia de Souza, advogada criminalista e professora
A Polícia Penal tem um total de 2.229 policiais. Duzentos e trinta e sete atuaram na fiscalização de campo em novembro. Como a senhora avalia a eficácia real de fiscalizar 14.952 endereços com esse contingente?
Esse número de agentes (237) não representa o efetivo disponível simultaneamente. O trabalho policial opera, invariavelmente, em regimes de escalas. Considerando a lógica das escalas de serviço, o contingente diário seria de algo em torno de 59 agentes para cobrir todo o território do DF e das cidades do Entorno. Além disso, uma fiscalização domiciliar efetiva não é apenas uma passagem visual. Exige deslocamento, abordagem tática de segurança, verificação biométrica ou documental do apenado, inspeção do perímetro para verificar a ausência de ilícitos e preenchimento de relatório. Isso significa que a fiscalização deixa de ser uma rotina de controle e torna-se um evento estatístico raro, assemelhando-se a uma loteria. Logo, a fiscalização, nesses moldes, não pode ser considerada efetiva. Estamos diante de uma equação estruturalmente inviável, que resulta em uma fiscalização seletiva e insuficiente, evidenciando uma grave falha do Estado em seu dever de custódia e supervisão, transformando a sanção penal em uma formalidade burocrática desprovida de conteúdo punitivo ou ressocializador.
Presos de alta periculosidade deveriam ter benefício de saídão e saidinhas?
Na minha avaliação, não. O benefício da saída temporária deve ser interpretado de forma restritiva e responsável, à luz dos princípios da proporcionalidade e da proteção da sociedade. Embora a Lei de Execução Penal preveja o instituto, ele não é um direito automático. Para presos de alta periculosidade, especialmente aqueles com histórico de violência grave, reincidência ou vínculo com organizações criminosas, a concessão do benefício contraria a finalidade preventiva da pena e expõe a sociedade a riscos concretos. A execução penal não pode se afastar da realidade criminológica. Benefícios devem ser concedidos com base em avaliação individualizada e risco real, e não como política de desafogamento do sistema.
Regiões como Ceilândia, Planaltina e Sol Nascente concentram milhares de indivíduos sob monitoramento. Essa alta densidade de apenados em regimes aberto e semiaberto pode sobrecarregar o policiamento preventivo local?
Indiscutivelmente, existe um desvio de função sistêmico que onera a PMDF. A PM tem a missão constitucional do policiamento ostensivo e preventivo. Já a Polícia Penal tem a missão da execução e fiscalização da pena. Com apenas 237 policiais penais para quase 15 mil apenados cumprindo pena em regime aberto e semiaberto ou em prisão domiciliar, a PM acaba, na prática, assumindo também a função de fiscal de pena. Cada vez que uma equipe da PMDF aborda um apenado descumprindo as regras do seu regime de pena, essa equipe sai de sua rota de patrulhamento preventivo por horas para procedimentos na delegacia. Isso cria embaraços na malha de segurança preventiva e, consequentemente, aumenta a vulnerabilidade do cidadão comum.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press







