O Supremo Tribunal Federal (STF) escreveu, nesta semana, um capítulo inédito da história do Brasil ao condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, formação de organização criminosa armada e outros crimes. Foi a primeira vez, em mais de 130 anos de República, que um ex-presidente e generais de alta patente foram responsabilizados criminalmente por uma trama golpista. A decisão reacendeu debates sobre a relação entre Justiça e política, a robustez das provas reunidas contra os réus e os possíveis desdobramentos internos e externos do processo.
Durante a semana, os advogados de Bolsonaro afirmaram que podem recorrer a cortes internacionais, em especial à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em Washington. No entanto, especialistas explicam que a medida, se tomada, não afetará o resultado da condenação do STF. Para o cientista político Leonardo Paz Neves, analista de inteligência qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV), essa estratégia foi “alimentada” pelo próprio voto de Luiz Fux, que citou convenções internacionais.
“Ele abriu a porta para que a defesa leve o caso à Corte, especialmente sob alegação de violação de direitos humanos”, disse o professor. Contudo, ele explicou que, caso isso ocorra, as consequências são apenas políticas, já que nenhuma decisão internacional altera a pena imposta. “Se uma Corte internacional declarar que Bolsonaro foi perseguido, abre espaço para governos estrangeiros utilizarem esse argumento. Nos Estados Unidos, por exemplo, poderia até servir como justificativa para pressões ou retaliações diplomáticas. É feio, é ruim para o Brasil, e pode ser usado por outros países, como os Estados Unidos, para justificar pressões políticas e econômicas. Por isso, não é irrelevante, ainda que não mude o resultado jurídico”, acrescentou.
O professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Antônio José Teixeira Martins deixou claro que não se trata de um recurso. “A Corte Interamericana não tem poder de anular decisões do STF. O máximo que pode acontecer é condenar o Estado brasileiro por violação de direitos humanos, como já ocorreu em outros casos. Isso gera constrangimento político e diplomático, mas não altera a condenação”, explicou.
Sobre o impacto na imagem dos envolvidos, principalmente de Bolsonaro, Paz Neves reforçou que o efeito político será duradouro. “A imagem de Bolsonaro será abalada entre setores moderados, mas continuará ressoando como preso político entre sua base mais fiel. Esse discurso vai persistir. A questão é o quanto ele conseguirá transferir votos aos herdeiros políticos, como filhos, esposa ou aliados”, avaliou. Ele comparou o caso com a prisão de Lula em 2018. “Na época, Lula insistiu até o último minuto em ser candidato para manter sua força política. Bolsonaro pode adotar postura semelhante, mas o PL tende a pressionar por uma definição mais rápida e pela construção de uma alternativa nacional. Essa será a chave para medir a capacidade de transferência de votos”, disse.
O professor Martins acrescentou que, em caso de acolhimento pela Corte, o Brasil poderia enfrentar apenas consequências diplomáticas. “Mesmo que houvesse uma condenação do Brasil no âmbito internacional, a pena de Bolsonaro não seria modificada. O que pode haver é responsabilização internacional e desgaste para o país, mas não reversão da sentença”, afirmou.
Para os dois especialistas, o julgamento representa um marco institucional. “Estamos diante de um caso que vai marcar gerações. A Justiça mostrou sua força e reafirmou que ninguém está acima da lei. É um recado claro de que a democracia não pode ser violada impunemente”, afirmou Paz Neves. O professor da Uerj concluiu que foi um julgamento histórico e que agora “cabe às instituições garantir que a execução da decisão siga firme, mesmo diante de pressões políticas e internacionais”.
Leonardo Paz Neves destacou que a consistência das evidências tornou praticamente inevitável a condenação. “A quantidade de provas era muito impactante. Havia registros muito robustos. Você tinha mensagens em telefone, planos sendo feitos, todos os metadados em relação aos documentos, onde foi escrito, onde foi impresso, de que lugar foi para qual, dos celulares, do plano para matar o presidente. Assim, é um volume de coisas muito assustador”, afirmou. Segundo ele, até mesmo entre apoiadores de Bolsonaro havia a percepção de que o resultado dificilmente seria outro diante do conjunto probatório. “Pouca gente tinha expectativa de um outro resultado, até mesmo da direita, dado o volume de informações. O volume era muito forte de dados e não tinha muito como ter resultado diferente”, comentou.
Na mesma linha, Martins avaliou que a decisão da Primeira Turma do STF acompanhou a robustez das provas apresentadas. “Havia elementos jurídicos muito concretos. A maior parte das teses defensivas não foi acatada porque as provas eram consistentes. O que se esperava era isso: condenação, dada a quantidade de crimes e o concurso material, que leva à soma das penas”, explicou. Para o professor, as penas elevadas impostas a Bolsonaro e a outros réus refletem diretamente essa realidade. “As penas foram elevadas porque os crimes eram numerosos e graves. Isso já estava dentro do esperado pelo conjunto probatório robusto apresentado”, completou.
Próximos passos
Ao analisar a condenação de Bolsonaro, o advogado criminalista Eduardo Maurício explicou que a execução da pena só começará após o trânsito em julgado da decisão. “O cumprimento da pena está condicionado ao esgotamento de todos os recursos possíveis. Isso pode retardar a execução, especialmente em casos complexos ou com múltiplos réus, como o atual”, afirmou, citando precedentes do STF.
A estratégia da defesa, segundo Maurício, será dividida em duas frentes. “A primeira, de natureza recursal, será a apresentação de embargos de declaração para sanar omissões e contradições no acórdão. E a segunda ocorrerá no âmbito da execução penal, com pedido de prisão domiciliar humanitária, fundamentada na idade avançada e nos problemas de saúde do ex-presidente”, disse. Ele acrescentou que a defesa pode ainda buscar prisão especial, amparada pelo artigo 295 do Código de Processo Penal.
O jurista explicou que o regime inicial fechado é obrigatório diante da gravidade da pena. No entanto, Maurício ressalta que há espaço para pedidos da defesa. “A prisão domiciliar é cabível para pessoas com mais de 70 anos que tenham problemas graves de saúde, que é exatamente o caso de Bolsonaro. A defesa já sinalizou que solicitará prisão domiciliar por motivos humanitários”, complementou.
Fabiana Landim de Freitas, mestre em ciências políticas e professora de direito penal da Faculdade Projeção, explicou que os recursos são limitados e dificilmente mudarão o mérito da decisão. “O primeiro recurso que cabe aí, que a defesa vai apresentar, são os embargos de declaração, que são apresentados no prazo de dois dias a contar da publicação do acórdão. Esses embargos servem para sanar obscuridade, omissão ou contrariedade, mas em regra não alteram o conteúdo daquilo que foi decidido”, explicou.
Sobre os embargos infringentes, a professora ponderou que a chance de aceitação é mínima. “Em tese, caberia também embargos infringentes, em razão do voto divergente do ministro Fux. Só que há o entendimento de que, para isso, seria necessária uma divergência qualificada. Como a turma era composta por cinco ministros e apenas um votou pela absolvição, não seriam admitidos esses embargos”, afirmou. Fabiana destacou ainda que uma eventual tentativa de embargos de divergência esbarraria na falta de jurisprudência sobre casos semelhantes, dada a natureza inédita do julgamento.
Quanto ao cumprimento da pena, o advogado Arthur Gonçalves Barbosa, do escritório Medeiros Martins e Landim, lembrou que o relator da ação, o ministro Alexandre de Moraes, fixou expressamente o regime inicial fechado. “O Código Penal determina que penas superiores a oito anos iniciam-se em regime fechado. Portanto, a regra é o envio para o presídio. Contudo, existe a possibilidade de a defesa pedir que o cumprimento se dê em casa, alegando a idade de Bolsonaro, que já tem 70 anos, e eventuais condições de saúde”, disse.
Barbosa ressaltou que a prisão definitiva só deve ocorrer após o trânsito em julgado. “Não tem como cravar uma data, porque não foi determinado o início imediato do cumprimento da pena. Isso deve acontecer após o julgamento dos recursos. Transitando em julgado, parte-se para a fase de execução e, aí sim, é expedido o mandado de prisão definitiva”, explicou.
Ele também comentou as medidas cautelares já impostas pelo STF, como a prisão domiciliar e a proibição de entrevistas. “Essas medidas valem enquanto persistirem os fundamentos que justificaram a sua aplicação. A partir do início do cumprimento da pena definitiva, elas perdem a razão de ser. Mas, enquanto não houver trânsito em julgado, elas permanecem vigentes”, concluiu o advogado.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Sergio Lima/AFP