Em meio à crise de intoxicações por metanol que preocupa autoridades brasileiras, o diretor-geral da Aliança Transnacional para o Combate ao Comércio Ilícito (Tracit), Jeff Hardy, afirmou, em entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, que o episódio “foi um incidente criminoso isolado”, e não uma crise sistêmica de saúde pública. Segundo ele, grupos ilegais aproveitaram brechas na cadeia de fornecimento de etanol e metanol para produzir bebidas falsificadas.
Na entrevista, o executivo defendeu que o Brasil fortaleça os mecanismos de controle sobre a distribuição de produtos químicos e adote sistemas rigorosos de rastreamento para evitar novos desvios.
Sob sua liderança, a Tracit desenvolve estudos e debates globais sobre o comércio ilícito. A organização representa mais de 1,5 mil marcas de renome internacional, presentes em 190 países e responsáveis por mais de 800 mil empregos.
Durante sua passagem pelo Brasil, na última semana, Hardy participou de uma audiência pública da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, que discutiu a circulação de bebidas alcoólicas adulteradas no país. Na ocasião, ele apresentou propostas e recomendações que podem contribuir para soluções duradouras ao problema em território brasileiro. Confira os principais trechos da entrevista:
O país enfrenta uma crise de intoxicações por metanol. Quais fatores, na sua visão, podem explicar o aumento de casos e como isso se relaciona com o comércio ilícito de álcool?
Este é um incidente criminoso trágico, mas isolado. Nossa avaliação mostra que o Brasil não enfrenta uma crise sistêmica de saúde pública nem um problema generalizado de evasão fiscal. O que aconteceu foi que grupos criminosos exploraram vulnerabilidades na cadeia de fornecimento de etanol e metanol para produzir bebidas falsificadas. O foco, agora, deve ser identificar esses pontos fracos, fortalecer os controles sobre a distribuição de químicos e garantir que tais desvios não voltem a ocorrer.
O senhor esteve no Senado nesta semana, em uma audiência sobre bebidas adulteradas. Como foi o diálogo com os parlamentares e que medidas o senhor acredita que o Brasil deve adotar para enfrentar essa questão?
O debate no Senado foi um passo importante para esclarecer a verdadeira natureza desse problema. Fiquei satisfeito em ver que parlamentares e representantes da indústria compreenderam que o tema não diz respeito ao mercado formal de bebidas. A indústria brasileira já é bem regulada e transparente. O que é necessário, agora, é uma abordagem direcionada: monitorar com mais rigor o etanol industrial, punir de forma exemplar os infratores e comunicar à população que os produtos legais são seguros.
O relatório da Tracit aponta que o álcool ilícito pode chegar a 27,7% do consumo global até 2025. Essa tendência já é visível na América Latina?
Infelizmente, o crescimento do álcool ilícito é uma preocupação global, e a América Latina não é exceção. Altos impostos, lacunas regulatórias e fiscalização fraca em algumas regiões permitem que operadores ilegais prosperem. A pesquisa da Tracit mostra que, sem uma ação regional coordenada, a participação do álcool ilícito pode continuar crescendo, prejudicando consumidores, empresas legítimas e a arrecadação dos governos.
Acredita que a falta de controle sobre o etanol industrial e a alta tributação das bebidas legais estão incentivando a falsificação e o uso de metanol?
Existe, sim, uma relação direta. Quando os impostos sobre os produtos legais se tornam excessivos, os consumidores podem ser levados a buscar alternativas mais baratas e inseguras. Ao mesmo tempo, o controle insuficiente sobre o etanol industrial cria oportunidades para o desvio criminoso. A combinação desses dois fatores — alta tributação e controle frágil — cria um terreno fértil para atividades ilícitas. Políticas equilibradas são essenciais, controle químico rigoroso e ambiente tributário justo para o setor legal.
Como o desvio de etanol e a adulteração com metanol se encaixam nas dinâmicas globais do comércio ilícito observadas pela Tracit?
O desvio de etanol e a adulteração com metanol são exemplos típicos de como as redes criminosas operam no comércio ilícito. Elas exploram fragilidades na cadeia de suprimentos, brechas regulatórias e pressões econômicas. O que vemos no Brasil reflete padrões já observados em outros setores e países, desde medicamentos falsificados até combustíveis contrabandeados. A solução é sempre a mesma: governança sólida, melhor coordenação entre agências e penalidades que realmente desestimulem a reincidência.
Quais medidas de rastreamento e desnaturação do etanol o senhor considera essenciais para evitar que ele seja redirecionado ao mercado ilegal?
Duas medidas são fundamentais. Primeiro, sistemas eficazes de rastreamento para monitorar o etanol industrial desde a produção até o uso final. Segundo, a desnaturação, a adição de agentes químicos que tornam o etanol impróprio para consumo humano. Países que combinam esses mecanismos, com inspeções regulares e regras claras de rotulagem, têm obtido mais sucesso em evitar o desvio para o mercado ilegal.
Entre os três pilares propostos pela Tracit — marco regulatório, fiscalização e conscientização —, qual deve ser prioridade para o Brasil neste momento?
Neste momento, a fiscalização deve ser a prioridade do Brasil, identificar e desmantelar as redes criminosas responsáveis. Mas isso precisa caminhar junto com a conscientização do consumidor, para que as pessoas entendam os riscos de comprar de fontes informais e a segurança do mercado legal. Com o tempo, o fortalecimento do marco regulatório consolidará esses avanços.
Que lições o Brasil pode tirar de países como Colômbia e Reino Unido, que adotaram legislações mais rígidas de controle de etanol?
Colômbia e Reino Unido são ótimos exemplos. A Colômbia aprimorou seus sistemas de monitoramento químico, tornando mais difícil o desvio de etanol para usos ilegais. O Reino Unido apostou em inspeções baseadas em risco e na coordenação entre autoridades fiscais, aduaneiras e de saúde. O Brasil pode adaptar essas lições, especialmente a ênfase na cooperação e na fiscalização direcionada, em vez de sistemas amplos e custosos.
O senhor vê possibilidade de cooperação regional na América do Sul para harmonizar regras de desnaturação e circulação do etanol?
Com certeza. O comércio ilícito não respeita fronteiras, e nossa resposta também não deve respeitá-las. A cooperação regional, com padrões harmonizados de desnaturação, troca de informações e operações conjuntas de fiscalização, tornaria muito mais difícil para os criminosos explorarem diferenças entre países. A Tracit está pronta para apoiar os governos da América do Sul na construção dessa integração.
A estrutura atual de órgãos como a Anvisa e a Receita Federal é suficiente para conter o avanço do álcool ilícito e das bebidas contaminadas?
O Brasil possui instituições sólidas, como a Anvisa e a Receita Federal, mas a coordenação entre as agências pode ser aprimorada. O ideal seria uma força-tarefa multissetorial voltada especificamente para o desvio químico e o álcool falsificado, com troca de dados e papéis bem definidos. Esses esforços reforçariam o trabalho já existente e ajudariam a fechar lacunas remanescentes.
Qual o papel do consumidor na prevenção dessa crise?
Os consumidores têm um papel vital. Ao comprar rejeitar bebidas muito baratas ou sem procedência, eles ajudam a reduzir a demanda por produtos ilícitos. Campanhas de conscientização podem amplificar esse efeito, mostrando que o mercado ilegal coloca vidas em risco. Escolhas conscientes protegem tanto a saúde individual quanto a sociedade.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado