Assustadoras para uns, fascinantes para outros, as cobras ainda carregam o peso de animais traiçoeiros, perigosos e imprevisíveis. Mas, por trás da aparência silenciosa e do movimento rastejante, existe um papel ecológico vital, e uma diversidade que vai muito além do medo. Especialistas reforçam que conhecer esses répteis é o primeiro passo para protegê-los e, mais do que isso, para conviver com eles de forma segura e consciente.
Com mais de 420 espécies registradas no Brasil, as serpentes estão presentes em todos os biomas, incluindo o Cerrado do Distrito Federal. “Elas regulam o equilíbrio ecológico como predadoras de roedores e pequenos animais, e também são presas para aves e mamíferos. Além disso, substâncias do veneno são usadas na produção de medicamentos, como remédios contra hipertensão”, explica Carlos Abrahão, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Segundo ele, cerca de 30 espécies brasileiras estão ameaçadas de extinção, especialmente aquelas com distribuição muito restrita ou que sofrem com degradação de habitat e tráfico de animais silvestres.
Boa parte da rejeição que as serpentes enfrentam vem da cultura popular. “Desde pequenos, aprendemos que elas são perigosas e associadas ao mal, como na Bíblia. Mas isso é um mito. Elas não são perversas, nem atacam pessoas sem motivo. O comportamento defensivo só ocorre quando são surpreendidas ou acuadas”, explica a bióloga Elizabeth Maria, doutora em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ela, muitas confusões nascem da falta de informação. “A caninana, por exemplo, é uma cobra muito ágil. Se você corre em linha reta e ela também, pode parecer que está sendo perseguido. Mas basta mudar a direção para ela seguir outro caminho”, diz.
Outros mitos também caem por terra: cobras não bebem leite de mulheres, não assobiam como pássaros nem todas são venenosas. Na verdade, apenas cerca de 20% das espécies brasileiras têm veneno com importância médica. E mesmo entre essas, a maioria evita o confronto. “Nada de torniquete, sucção ou corte. Em caso de picada, a recomendação é manter a calma, deitar a vítima, fotografar a cobra, se possível, e levá-la rapidamente ao hospital”, orienta Elizabeth.
No Distrito Federal, a Polícia Militar Ambiental é acionada com frequência para o resgate de serpentes em áreas urbanas. Os casos aumentam nos períodos chuvosos, quando os animais estão mais ativos, mas também têm relação com a expansão urbana e descarte irregular de lixo. “A recomendação é manter o quintal limpo, vedar frestas de portas e jamais tentar capturar ou matar uma serpente por conta própria. Ligue para o 190 e aguarde o resgate”, orienta a corporação.
Convivência
Para Bruna Palma, tutora de Betina, uma jiboia-arco-íris, o medo das serpentes nasce, na maioria das vezes, da ignorância. “A gente tende a ter medo daquilo que não conhece. E o primeiro passo para preservar é justamente conhecer. Mesmo quem não quer criar uma cobra como pet pode aprender sobre sua importância e entender que elas não são ameaças.”
Ela explica que as serpentes legalmente comercializadas no Brasil não têm peçonha e são criadas em cativeiro, o que as torna mais adaptadas ao convívio humano. “São animais que vêm de linhagens domesticadas. Com manejo diário e respeitoso, elas se acostumam ao contato e ficam muito tranquilas. A minha nunca deu bote. Inclusive, minha filha, de quatro anos já manuseia ela comigo ao lado, com todo cuidado e segurança”, conta.
Apesar de manter Betina em casa, com todos os cuidados legais e sanitários, Bruna destaca: “Ainda existe preconceito e medo. Tem gente que acha que ela pode escapar e atacar alguém. Mas isso não condiz com a realidade. Criadores responsáveis sabem que o manejo é sério e que esses animais não oferecem os riscos que muita gente imagina”.
Outra voz que reforça essa convivência sem sustos é a da pedagoga Giovana Rabelo, de 25 anos. Desde criança, ela se sentiu atraída pelas cobras. Hoje, é tutora de Anakin, uma jiboia da espécie Boa constrictor constrictor. “Sempre fui apaixonada por animais, e quando tive meu primeiro contato com uma cobra, soube que um dia teria uma. Assim que pude, comprei o Anakin e descobri o quanto esses bichos são tranquilos”, relembra.
Giovana diz que enfrentou preconceitos por ter uma serpente, mas que isso se dissipou com informação. “As pessoas têm medo do que não conhecem. Acham que a cobra é traiçoeira, maligna. Mas quando conhecem o Anakin, percebem que é um animal calmo, que só quer ficar escondidinho ou enrolado em algum canto quente. Quando está comigo, ele se enrola no meu braço e dorme.”
Ela destaca que o comportamento de sua jiboia é previsível e nada agressivo. “Nunca tentou atacar ninguém. E os sustos que já levei foram mais por distração minha, como quando o terrário ficou mal fechado e ele escapou. Mas até nisso ele só se escondeu debaixo da cama, bem quietinho. Conhecendo o animal, dá para entender seus sinais.”
Sobre os cuidados, Giovana explica que divide o terrário entre áreas frias e quentes, oferece água para banho e bebida, usa placas de aquecimento e alimenta Anakin com roedores adquiridos em locais especializados. “Ele come a cada 30 a 40 dias, dependendo da fase. Agora mesmo está em brumação, por conta do frio, e não come há dois meses. É tudo muito controlado”, detalha.
Ela também rebate os mitos que escuta com frequência. “Dizem que cobras medem a pessoa para saber se vão engolir, que têm veneno no bafo, mas é tudo lenda. A jiboia nem é peçonhenta. E o ‘bafo’ é só um aviso sonoro quando estão incomodadas. É uma forma de se proteger, não de atacar”, pondera.
Apesar do medo ainda persistente, o recado dos especialistas e tutores é unânime: as serpentes merecem respeito, espaço e conservação. “A presença delas não é sinal de desequilíbrio, pelo contrário, é sinal de que ainda existe natureza por perto”, resume Carlos Abrahão.
Caso Naja
Pedro Henrique Krambeck , estudante de veterinária, criava serpentes exóticas, incluindo uma naja Kaouthia, em seu apartamento no Guará, o que é proibido por lei. Ele foi picado enquanto fazia a limpeza do terrário, em julho de 2020. O veneno quase o matou.
Pedro foi socorrido e ficou em coma por dois dias. A partir do episódio, a Polícia Civil Civil do DF começou uma investigação sobre tráfico de animais silvestres. Após mais de dois anos e meio, Pedro e mais três pessoas foram condenados, mas em regime aberto.
De acordo com o Ibama, ter uma cobra em casa é possível, desde que não seja venenosa. Para isso, o animal deve ser adquirido em locais autorizados pelo órgão ambiental local e oriundo de criadouros legais. É preciso também apresentar um protocolo que garanta a segurança no manuseio dos animais e adoção de medidas para manter um ambiente adaptado.
Quem mantém animais silvestres sem permissão e/ou os adquiriu de forma clandestina, pode entregá-los espontaneamente ao Ibama mais próximo e, conforme a legislação, não ser responsabilizado.
Os contatos do Ibama no DF estão disponíveis no link www.gov.br/ibama/pt-br/composicao/quem-e-quem/ibama-nos-estados/df.
Se alguém suspeitar de venda, criação, reprodução de animais silvestres de maneira ilegal, pode denunciar ao Ibama, por meio da Linha Verde, no telefone 0800-618080.
*Estagiária sob a supervisão de Malcia Afonso
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press