Na era das “canetas emagrecedoras”, uma velha arma do arsenal contra a obesidade — a cirurgia bariátrica — ainda é a aposta para pacientes com a forma grave da doença, caracterizada pelo índice de massa corporal (IMC) acima de 40 kg/m2. Aqueles com o grau II (35kg/m2 a 39,9 Kg/m2 e comorbidades) também são beneficiados pelo procedimento que, segundo estudos recentes, promove uma perda de peso mais sustentada a longo prazo. Outras pesquisas sugerem que, para algumas pessoas, aliar a intervenção aos medicamentos injetáveis é a solução mais adequada.
Segundo pesquisadores do NYU Langone Health, da Universidade de Nova York, em 24 meses, a cirurgia bariátrica resultou em um emagrecimento cerca de quatro vezes maior do que as injeções semanais das substâncias semaglutida ou tirzepatida. A equipe, liderada pela cirurgiã Avery Brown, apresentou um estudo na reunião científica da Sociedade Norte-Americana de Cirurgia Metabólica e Bariátrica (ASMBS) mostrando que, em dois anos, os pacientes submetidos à gastrectomia vertical ou ao bypass gástrico (veja infografia) perderam 24% do peso inicial, comparado a 7% eliminados por pessoas que fizeram uso contínuo dos medicamentos agonistas de GLP-1.
Revolução
Considerados uma revolução no tratamento da obesidade e eleitos o destaque científico de 2023 pela revista Science, os agonistas do hormônio GLP-1 estimulam a produção de insulina e a captação de glicose. No cérebro, promovem a sensação de saciedade e, no trato gastrointestinal, reduzem a velocidade com que o conteúdo do estômago é esvaziado. Formulada originalmente para pacientes de diabetes tipo 2, a canetinha também tem mostrado resultados animadores no combate a comorbidades associadas ao excesso de peso, como doenças cardiovasculares.
Avery Brown projetou o estudo para avaliar se, no mundo real, sem a interferência de um ensaio clínico, a perda de peso a longo prazo seria semelhante entre pacientes que usaram os medicamentos GLP-1 e aqueles submetidos à cirurgia bariátrica. A equipe se baseou em dados de 122.595 adultos sob o regime da semaglutida ou da tirzepatida e de 18.136 pessoas que fizeram a intervenção. Depois dos ajustes metodológicos, os resultados mostraram que, em dois anos, a média de emagrecimento foi de 14,9kg a 25,7kg (cirurgia) e 5,3kg a 10,5kg (remédios).
“Ensaios clínicos mostram perda de peso entre 15% e 21% para GLP-1, mas nosso estudo sugere que a perda de peso no mundo real é consideravelmente menor. Sabemos que até 70% dos pacientes podem interromper o tratamento em um ano”, disse Brown, na apresentação do estudo. O trabalho, porém, ainda não foi publicado na íntegra em revistas científicas revisadas por pares. Dois artigos recentes sobre a eficácia do GLP-1 fora do ambiente de pesquisa demonstraram emagrecimento de 10% a 15% entre seis meses a um ano, além de melhoras significativas no controle glicêmico, em comparação ao início do tratamento.
Duas perguntas para Carlos Schiavon, cirurgião bariátrico e presidente da ONG Obesidade Brasil
Dependendo do paciente, ele pode se beneficiar mais da cirurgia bariátrica do que dos medicamentos, e vice-versa?
Com certeza, cada vez mais tendemos a individualizar o tratamento para cada perfil de paciente. As indicações para os dois tratamentos são diferentes, mas uma parcela de pacientes pode receber ambos. As medicações para obesidade são indicadas em pacientes com IMC acima de 25kg/m2, quando tem complicações como diabetes, hipertensão, apneia do sono e outras, ou acima de 30kg/m2, independentemente de complicações. As indicações para cirurgia bariátrica e metabólica começam com IMC a partir de 30kg/m2. Acredito que, cada vez, mais a cirurgia será indicada em pacientes mais graves, com IMCs muito altos ou com muitas complicações da obesidade. Pacientes que por algum motivo não conseguem tomar as medicações, também serão candidatos à cirurgia.
Dados levantados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica mostram que, no Brasil, apenas 1% dos pacientes com indicação a cirurgia conseguem ter acesso pelo Sistema Único de Saúde. Quais os principais desafios enfrentados por essas pessoas?
Esse 1% se refere a toda população com indicação de cirurgia e que acaba sendo operada. Provavelmente, se considerarmos a população do SUS, essa porcentagem deve ser ainda menor. São muitos fatores que impedem o acesso. O principal é que a grande maioria dos pacientes sequer recebe o encaminhamento ao especialista para avaliação do quadro de obesidade. Os que conseguem chegar ao especialista começam uma nova jornada, que é conseguir realizar a cirurgia propriamente dita, pois as filas podem chegar a vários anos. A carência de serviços especializados é um dos principais fatores. Além das questões sistêmicas, uma parcela dos pacientes tem medo de realizar a cirurgia ou são mal orientados sobre o procedimento e acabam não fazendo.
“Minha melhor decisão”
Desde pequena, ouvia coisas do tipo “não come tanto para não engordar”, o que me afetou muito em relação à comida e à minha imagem. Na adolescência, piorou. Já na vida adulta, a ansiedade explodiu e me fez ter compulsão alimentar, engordando muito e desenvolvendo várias doenças. Tentei dietas da moda, tipo jejum intermitente, dieta carnívora e só líquidos. Mas, como sempre, dietas restritivas são complicadas de seguir. Perdi uns quilos no começo, mas depois engordei tudo de novo e fiquei muito frustrada.
Já com acompanhamento médico, tomei sibutramina por um ano e emagreci bastante, de 96kg para 60kg. Foi bom demais, mas, quando parei o remédio, veio a pandemia e engordei tudo de novo. Depois que a pandemia acabou, além do sobrepeso, eu enfrentava uma condição crônica na região lombar, que se intensificou devido ao excesso de peso. Estudei muito sobre a bariátrica para não me deixar ser levada pelos mitos e medos alheios. Comecei sendo realista, sabendo que era mais que uma dieta. Levei bem a sério.
O pós-operatório foi bem difícil. Mesmo sabendo de tudo que passaria, na teoria é tudo mais fácil. Mas não me arrependo: essa foi a melhor decisão que eu tomei. Minha vida mudou e minha dor lombar melhorou significativamente. O médico que me operou me vê uma vez por ano. Também faço acompanhamento com a psicóloga e a psiquiatra, além de ortopedista, endocrinologista e nutricionista.
No dia da cirurgia, eu estava com 93kg e IMC de 36,4. Hoje, três anos depois, estou com 60kg, estabilizados, e meu IMC é 25,5.
Marisley Santos de Oliveira, 37 anos, gestora de tecnologia
Novo paradigma
Para o especialista em cirurgia digestiva Igor Castor, da SlimPass, o conjunto de estudos que avaliam a eficácia dos medicamentos baseados no hormônio GLP-1 indica que, para alguns pacientes com indicação de cirurgia bariátrica, o uso contínuo do remédio em um cenário de acompanhamento multidisciplinar é preferencial. “Vale destacar que a cirurgia bariátrica é uma excelente opção, mas, se existe um tratamento clínico eficaz para a doença, a conduta médica é sempre postergar ao máximo a cirurgia”, defende.
Já o cirurgião João Afonso Sallet, titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, defende que, quando há indicação médica para o procedimento, a bariátrica é preferível. “Esses pacientes serão mais bem tratados pela cirurgia em termos de eficácia no controle de peso e melhora de doenças associadas, além da manutenção da remissão, comparado aos que fazem uso contínuo dos medicamentos”, acredita. “Além de mudar a anatomia do aparelho digestivo, induzindo a saciedade precoce, a cirurgia promove a liberação de hormônios intestinais, como o próprio GLP-1, e outras 30 substâncias, que atuam de maneira perene no controle do peso, da saciedade e da glicemia”, diz.
Para Sallet, os medicamentos são uma boa alternativa para quem está acima do peso, mas não se enquadra na indicação cirúrgica. “Os derivados do GLP-1, do GIP e da oxintomodulina têm mostrado resultados ótimos para o controle de peso e doenças associadas. Porém, quando o medicamento é interrompido, o normal é voltar à evolução natural da obesidade”, diz.
Reganho
O risco de reganho de peso também existe para pessoas que fizeram a cirurgia e, nesses casos, a combinação com os medicamentos pode ser bem-sucedida. “Os estudos mostram que a cirurgia promove maior perda de peso a longo prazo. Mas é importante lembrar que muitos pacientes, anos após a bariátrica, acabam precisando retomar o tratamento medicamentoso com as canetas para manter o peso e a saúde estáveis”, destaca a médica endocrinologista Wanessa Stival, da Clínica Hewa.
Um estudo divulgado na semana passada por pesquisadores da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, nos Estados Unidos, constatou que uma proporção crescente de pacientes submetidos à bariátrica faz uso dos medicamentos agonistas do GLP-1. O artigo, publicado na revista Jama, revelou que, em períodos de acompanhamento de dois a 10 anos, 14% das 15.749 pessoas incluídas na amostra começaram a usar esses remédios. Cerca de 21% delas aderiu às canetas em até dois anos após a cirurgia, e 53% em até quatro anos. “Acreditamos que, no futuro, o tratamento da obesidade seguirá esse paradigma para alguns pacientes”, diz o principal autor, Hemalkumar Mehta. “As pessoas não recorrerão apenas à cirurgia ou aos GLP-1s — muitas vezes, usarão ambos.”
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Valdo Virgo