Poucos lugares em Brasília traduzem com tanta intensidade o espírito da cidade quanto o Cine Brasília. Inaugurado em 22 de abril de 1960, um dia após o nascimento oficial da capital, o cinema não é apenas uma construção modernista desenhada por Oscar Niemeyer: é um templo consagrado à memória afetiva, à estética e à resistência cultural de um país inteiro. Brasília está completando 65 anos nesta segunda-feira (21), mas o Cine Brasília sempre teve o dom de parecer eterno.
Entre as curvas do concreto e os traços poéticos de Athos Bulcão, ali na entrequadra 106/107 Sul, pulsa a maior tela do Distrito Federal — 14 metros de largura que não apenas exibem filmes, mas projetam sonhos, debates, rupturas e paixões que moldaram e moldam a cinematografia nacional. A cada sessão, um novo convite ao encontro: entre público e obra, entre memória e futuro.
Neste aniversário da cidade, a coluna Cinema com Ela compartilha relatos que ajudam a lembrar por que o Cine Brasília é tão especial.
“A primeira vez que entrei no Cine Brasília, fiquei impactado com o tamanho da tela. A sensação era de estar dentro do filme. A partir dali, entendi que o cinema era mais do que entretenimento: era experiência sensorial e política também”, conta Morilo Carvalho, cinéfilo e frequentador assíduo do espaço.
Foi ali, naquele espaço que mais parece um relicário da sétima arte, que o Brasil viu nascer um dos mais importantes festivais do continente: o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Idealizado por Paulo Emílio Salles Gomes, com o sopro criativo de Darcy Ribeiro e a inspiração modernista que banhava a cidade em 1965, o festival deu ao Cine Brasília a missão de ser muito mais do que uma sala de exibição. Ele se tornou lar — de filmes, de artistas, de ideias.
“É muito emocionante saber que esse espaço foi palco de tantas estreias importantes do cinema brasileiro. Quando piso lá, sinto que faço parte dessa história também”, diz a atriz Gabriela Correa.
Mas o Cine Brasília não vive só de tapete vermelho. O que o torna insubstituível é o que oferece nos dias comuns. Com ingressos acessíveis, acolhe o cinema que resiste ao circuito comercial. Recebe produções internacionais pouco vistas, documentários, experimentações visuais e histórias regionais.
O cinema evoluiu — da película 35mm ao projetor digital 2K —, mas não perdeu o encanto dos tempos em que as plateias riam com Jerry Lewis ou se emocionavam com Glauber Rocha. Tampouco se afastou de sua vocação política: na tela, passaram obras proibidas, como O País de São Saruê, e por seu corredor desfilaram ícones como Leila Diniz, Grande Otelo, Sônia Braga, Ruy Guerra, Júlio Bressane. Brasília os viu ali, à distância de um assento acolchoado, sob a luz tênue do projetor.
“É mais que um cinema. É onde a cidade se vê e se revê. Um lugar onde o tempo passa devagar, como se respeitasse a importância do que está sendo projetado”, afirma Ana Karina de Carvalho, jornalista e curadora.
E no meio de tantas histórias, deixo aqui uma que é minha também. Lembro que, depois de uma perda muito significativa, minha irmã me levou ao Cine Brasília para assistir A Vida Invisível (2019). A gente já sabia que o filme era triste — só não sabia que era muito triste. Ela ficou me pedindo desculpas, e acabou que aquele filme tão especial sobre duas irmãs me ajudou a lidar, ainda que um pouquinho, com a dor da perda. Sentada nas cadeiras do nosso cinema, me senti chorosa, mas pronta para continuar.
Símbolo cultural, o Cine Brasília é um dos últimos cinemas de rua em atividade no país. E talvez por isso — ou por tudo isso — permanece vivo no inconsciente coletivo da cidade. É ponto de encontro, memória urbana, chama acesa de um cinema brasileiro que não se rende.
Em tempos de efemeridade, o Cine Brasília é permanência. Uma sala que não apenas exibe filmes, mas guarda histórias. Que não apenas ilumina uma tela, mas também ilumina a alma.
Por Tamires Rodrigues do Jornal de Brasília
Foto: Arquivo Público do DF / Reprodução Jornal de Brasília