Nas escolas, o bullying ultrapassou o pátio e os intervalos entre as aulas. Hoje, ele acontece também nas telas, em grupos de mensagens e nas redes sociais. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil, coordenada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), quase 3 em cada 10 crianças e adolescentes já passaram por situações ofensivas na internet.
A violência on-line ocorre quando a internet é usada como ferramentas de agressão, intimidação ou humilhação. Isso inclui desde a criação de grupos em aplicativos de mensagens para falar mal de colegas até a disseminação de apelidos pejorativos, envio de mensagens ofensivas, compartilhamento de fotos sem autorização e até ameaças diretas.
Esse problema é chamado de cyberbullying. Mas a violência digital também se expressa em discursos de ódio, aliciamento e exposição indevida de imagens.
A psicóloga Aline Araújo, mestranda do Programa de Psicologia do Desenvolvimento e Escolar, da Universidade de Brasília (UnB), observa que o fenômeno tem crescido proporcionalmente ao uso precoce das redes sociais. “Infelizmente esse aumento é bastante notório. O cyberbullying continua sendo uma das formas mais comuns de violência, mas temos visto crescer também a exposição de crianças, o que desencadeia outras violências”, explica.
Além das ofensas, o Cetic.br mostra que adolescentes também se arriscam em interações perigosas. Entre usuários de 15 a 17 anos, 32% relataram que procuraram fazer novos amigos on-line e 17% disseram que adicionaram pessoas que não conheciam às suas listas de contato. “Os adolescentes tiveram mais contato com alguém na internet que não conheciam pessoalmente, quando comparados às crianças” afirmou a instituição.
Impactos no desenvolvimento
As consequências da violência on-line vão muito além da tela. Segundo Aline, os efeitos imediatos podem aparecer como rebaixamento da autoestima, alterações no autoconceito e crises de ansiedade. Mas, quando a violência persiste, as marcas tendem a se aprofundar.
“Esses efeitos podem inaugurar processos de adoecimento mais profundos e crônicos. É nesse ponto que surgem quadros de depressão, isolamento social, dificuldades escolares e até mesmo transtornos graves de saúde mental. O impacto a longo prazo pode ser devastador do ponto de vista emocional e comportamental”, alerta.
Ela lembra que a fase do desenvolvimento é um fator determinante. “Estamos falando de indivíduos em pleno processo de amadurecimento biopsicossocial. No caso das crianças, a violência pode interferir no sistema de formação de si, gerando traumas que serão carregados para a vida adulta. Nos adolescentes, o sofrimento é potencializado pela construção social intensa desse período”, afirma.

Como identificar sinais
A psicóloga Aline Araújo destaca que os sinais podem ser sutis, mas precisam de atenção. “Dentre os principais sinais, destaco o retraimento e o isolamento social, as alterações de humor que podem se manifestar como impaciência, agressividade ou tristeza persistente. Alterações no sono e no apetite também chamam a atenção, assim como comportamentos não habituais, muitas vezes usados como forma de garantir a atenção dos adultos”.
“Além disso, é comum que crianças e adolescentes mudem repentinamente a frequência de uso dos eletrônicos, seja aumentando de maneira compulsiva, seja evitando o contato com as telas. Nada disso pode ser ignorado”, explica Araújo.
Segundo a psicóloga, o vínculo de confiança é a melhor forma de prevenção. “É fundamental estar por perto diariamente, mostrar que se importa e que está disponível para orientar e ajudar. O vínculo é construído no dia a dia e garante um espaço de escuta livre de julgamentos. Esse vínculo cria um ambiente seguro e acolhedor para que a criança ou o adolescente fale sobre o que está vivendo”, ressalta.
Denúncia e proteção
A violência digital contra crianças e adolescentes aparece de forma alarmante nos registros da SaferNet Brasil, organização não governamental que há quase vinte anos atua na prevenção e no enfrentamento de violações de direitos humanos na internet. Entre janeiro e julho de 2025, a entidade recebeu 49.336 denúncias de abuso e exploração sexual infantil online, número que corresponde a 64% de todas as notificações feitas no período.
Segundo a diretora de projetos especiais da ONG, Juliana Cunha, a tendência é de agravamento desse cenário, com a emergência de novos riscos. “As denúncias relacionadas a imagens de abuso sexual infantil permanecem em patamar alto, e já notamos o uso de inteligência artificial para gerar esse tipo de conteúdo, seja criando imagens inéditas, seja adulterando outras já existentes. É um fenômeno preocupante que tende a se agravar”, alerta.
A SaferNet coordena a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, em cooperação com o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça. Havendo materialidade, as informações são encaminhadas às autoridades para abertura de inquéritos. Além disso, a ONG oferece serviços de acolhimento e orientação às vítimas por meio do Canal de Ajuda ([www.canaldeajuda.org.br](http://www.canaldeajuda.org.br)), voltado para quem viveu alguma situação de violência digital ou tem dúvidas sobre como agir.
Juliana explica que o cyberbullying é hoje a violência mais relatada por adolescentes. “Diferente da violência sexual, que em muitos casos é cometida por adultos contra crianças, o cyberbullying ocorre entre pares, geralmente colegas ou conhecidos. Envolve pelo menos três atores: quem agride, quem sofre e a testemunha. É uma prática de segregação e discriminação que atinge em cheio adolescentes em busca de aceitação social. Muitos sofrem calados, com medo de retaliação, o que agrava o sofrimento”, destaca.
Para a diretora, a melhor forma de prevenir é a educação. “É fundamental que escolas trabalhem temas como convivência, diversidade e respeito às diferenças de forma transversal, durante todo o ano. Isso ajuda crianças e adolescentes a desenvolverem habilidades socioemocionais, capacidade de empatia e resolução de conflitos. Também é importante apoiar a rede de pares, porque muitas vezes o adolescente conta primeiro para um amigo, e não para um adulto. É essencial que esses colegas saibam como ajudar”, afirma.
Juliana também reforça que famílias e escolas precisam atuar juntas no enfrentamento. “As escolas muitas vezes tomam conhecimento primeiro que os pais e têm responsabilidade de agir rapidamente, interromper a violência e orientar as famílias. Já os pais precisam conversar com os filhos sobre segurança digital e aprender a usar ferramentas de supervisão. É um trabalho de sensibilização que precisa ser feito em conjunto”, explica.
Em relação às plataformas digitais, ela lembra que há grandes diferenças no nível de segurança e cooperação com autoridades. “Algumas empresas investem em equipes de moderação e têm representação no Brasil. Outras, como o Telegram, oferecem quase nenhuma supervisão, o que dificulta investigações e facilita a proliferação de crimes. Ao mesmo tempo, há boas práticas em curso, como iniciativas de cooperação entre empresas para compartilhar sinais de abuso, o que pode inspirar outras plataformas”, avalia.
Juliana destaca ainda a importância da nova legislação, como o chamado ECA Digital, que impõe maiores responsabilidades às plataformas. “A aprovação da lei é um passo importante, mas será essencial definir quem será a autoridade autônoma responsável por fiscalizar sua execução. O Plano Nacional de Proteção de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital também deve avançar nesse sentido”, explica.
Para ela, o futuro passa inevitavelmente pela educação. “A melhor forma de mudar essa realidade é educar. Com a educação, preparamos as pessoas para conviver de forma responsável nesses espaços e garantimos que elas conheçam seus direitos, façam denúncias e cobrem respostas das autoridades. É a aposta mais eficaz para transformar a internet em um ambiente mais seguro para crianças e adolescentes”, conclui.
Escola como aliada
A prevenção, segundo especialistas, exige uma atuação conjunta. “Família e escola são agentes fundamentais na construção dos sujeitos. As escolas devem assumir um compromisso claro com a psicoeducação, promovendo rodas de conversa, palestras e projetos de educação digital continuada. Não se trata apenas de controlar o tempo de tela, mas de educar para um uso saudável e consciente das redes sociais”, ressalta Aline.
A coordenadora da pesquisa TIC Educação, Daniela Costa, acrescenta que os educadores já estão atentos ao problema. “A escola está entre as instituições que constituem a rede de proteção à criança e ao adolescente. Educadores e equipes pedagógicas orientam os alunos a exercitarem o uso saudável, crítico e responsável dos recursos digitais”
De acordo com Daniela, dados da pesquisa mostram que 61% dos professores de ensino fundamental e médio já apoiam estudantes em situações sensíveis na internet e que 87% realizaram atividades sobre segurança digital no último ano. Cyberbullying, discurso de ódio e discriminação estão entre os temas mais trabalhados em sala de aula”, afirma.
Para Aline Araújo, a mensagem que precisa ser ouvida por pais, professores e pela sociedade é clara: “Não podemos falhar no cuidado com a infância e adolescência, porque as consequências são profundas e, às vezes, irreversíveis.”
Onde buscar ajuda em casos de violência on-line
- SaferNet Brasil – Canal Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Permite denunciar conteúdos ilegais de forma anônima e segura | https://www.safernet.org.br
- Helpline SaferNet – Canal de ajuda com orientação direta para vítimas de violência digital | https://helpline.org.br
- Disque 100 – Central do Governo Federal para denúncias de violações de direitos humanos, inclusive contra crianças e adolescentes.
- Conselho Tutelar – Responsável por proteger os direitos das crianças e adolescentes em cada município.
- Delegacias especializadas em crimes cibernéticos – Atuam em casos de ameaças, aliciamento, exploração sexual e outros crimes digitais.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Caio Gomez