Cientistas da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos, descobriram que a fala envolve um processo muito mais complexo do que se sabia até então. Os pesquisadores verificaram que o planejamento e a coordenação — chamado sequenciamento motor da fala — ocorre não somente em parte do lobo frontal, a broca, mas também na área denominada giro pré-central médio, ou mPrCG. Até então, acreditava-se que essa região controlava somente a laringe, uma parte do trato vocal que ajuda a emitir sons agudos ou graves. A revelação mostra, segundo os pesquisadores, que a rede que envolve a fala é extremamente intricada e complexa. “Acontece que essa parte do cérebro tem um papel muito mais interessante e importante”, disse Edward Chang, chefe de neurocirurgia e autor senior do estudo. “Ela une os sons da fala para formar palavras, o que é crucial para conseguir pronunciá-las.”
No estudo recém-publicado na revista científica Nature Human Behavior, Chang afirma que a pesquisa pode contribuir para avançar nos tratamentos relativos aos distúrbios da fala, auxiliando no desenvolvimento de dispositivos que permitam que pessoas paralisadas se comuniquem e ajudar a preservar a capacidade do paciente de falar após uma cirurgia cerebral.
Marcia Keske Soares, coordenadora do Comitê de Aspectos Perceptivos e Cognitivo-Linguístico da Fala e seus Transtornos do Departamento de Fala da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia e doutora em Letras e Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), ressaltou a importância da descoberta. “A fala, como a gente conhece, é algo bastante complexo, envolve vários sistemas, como respiratório e neurológico, por exemplo. Há um conjunto de aspectos importantes de sistemas e subsistemas, como o ressonantal, o respiratório, o fonatório, o articulatório e o prosódico. Então, esses cinco subsistemas são importantíssimos para a fala. Em relação à região do cérebro, existe o sequenciamento motor de fala, muito importante porque é o que move a nossa produção, ou seja, eles encontraram essa conexão.”
Para o estudo, os voluntários observaram conjuntos de sílabas e palavras em uma tela e, em seguida, pediram que pronunciassem os sons em voz alta. Alguns conjuntos eram sílabas simples repetidas, como “ba-ba-ba”, enquanto outros incluíam sequências mais complexas, como “ba-da-ga”, que continham uma variedade de sons. A partir daí, verificaram que, quando os participantes receberam sequências mais complexas, o mPrCG se mostrou mais ativo do que quando receberam sequências simples. A equipe também descobriu que o aumento da atividade nessa região previu a rapidez com que os participantes começariam a falar após lerem as palavras.
Experiência
Na pesquisa, os pesquisadores, liderados por Chang com apoio da cientista Lingyun Zhao, testaram e examinaram 14 voluntários já submetidos a cirurgia cerebral como parte de seu tratamento para epilepsia. Cada paciente teve uma fina malha de eletrodos colocada superficialmente no cérebro — registravam os sinais cerebrais que ocorriam pouco antes de pronunciarem suas palavras.
A exemplo de Chang, neurocirurgiões utilizam esses eletrodos para mapear em que áreas as convulsões ocorrem no cérebro do paciente. Se houver regiões de fala próximas, o médico também as identifica a fim de evitar danos. Os cientistas conseguiram aproveitar a tecnologia para ver o que estava acontecendo no mPrCG quando os pacientes estavam falando. “Observar a combinação (de sílabas e palavras) faz trabalhar mais para planejar sequências mais complexas e, então, sinalizar aos músculos para colocar o plano em ação. Embora o mPrCG esteja fora da área de broca, ele é essencial para orquestrar como falamos”, disse Lingyun Zhao.
A equipe também usou os eletrodos para estimular o mPrCG em cinco participantes do estudo, enquanto eles pronunciavam sequências definidas de sílabas. No caso das sequências relativamente simples, não apresentavam dificuldades. Mas quando receberam sequências mais complexas, a estimulação fez com que os participantes cometessem erros semelhantes à apraxia de fala (distúrbio que causa dificuldade para emitir sons). “Isso nos aponta para uma nova direção de pesquisa, na qual aprender como o mPrCG faz isso nos levará a uma nova compreensão de como falamos”, afirmou a cientista.
Avanços à vista
“Na área da fonoaudiologia, nós temos diversos tratamentos para crianças com o transtorno de fala motor, muitos de origem orgânica, então, geralmente, de neurodesenvolvimento. Há propostas terapêuticas que já existem e outras que podem ser criadas, a partir desse enfoque no planejamento, no sequenciamento do motor de fala, como a neuromodulação — muito utilizadas em adultos que têm acometimento neurológico na fala. Ainda não há tantas evidências com crianças. Acredito que novos métodos e tecnologias para auxiliar na terapia de fala podem surgir a partir dessa evidência. É um excelente achado dos pesquisadores e realmente traz algo importante não só para a questão da ciência, da pesquisa, mas para a clínica, para o trabalho clínico daquelas pessoas que precisam de intervenção”
Marcia Keske Soares, coordenadora do Comitê de Aspectos Perceptivos e Cognitivo-Linguístico da Fala e seus Transtornos do Departamento de Fala da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia e doutora em letras e linguística aplicada
O que é broca?
No final do século 19, o fisiologista Pierre Paul Broca descobriu que a maior parte do processamento da linguagem ocorria em uma determinada região do cérebro, por isso essa área passou a ser chamada com o sobrenome do pesquisador. Ele disse que o sentido da linguagem a partir do som ouvido e a transformação em palavras se passa na “broca”.
Duas perguntas para Flávio Leão Lima, neurocirurgião do Hospital Santa Lúcia, de Brasília e do Hospital da Criança, especializado em neurocirurgia pediátrica no Canadá
Na sua avaliação, esse estudo representa um avanço? Por quê?
O estudo de Liu e Chang sobre o sequenciamento motor da fala no giro pré-central (mPrCG) oferece avanços significativos para a neurocirurgia e a fonoaudiologia ao elucidar o papel crítico dessa região cerebral no planejamento motor da fala baseado em informações fonológicas, e também desafia o modelo tradicional de localização motora da fala, demonstrando uma nova região implicada no processamento da linguagem. Essa pesquisa poderá servir de base para avanços em reabilitação em fonoaudiologia, e planejamento e mapeamento neucirúrgico mais refinados.
Em que essa pesquisa pode contribuir para aperfeiçoar os tratamentos já existentes?
No campo da neurocirurgia, o estudo mostra a necessidade de mapeamento intraoperatório do mPrCG e de suas vias associadas para evitar déficits de fala pós-operatórios. A técnica de imagem de tractografia para planejamento pré-operatório aplicada a essa região do giro pré-central pode ganhar ainda mais relevância para a preservação da linguagem em neurocirurgias, podendo também se integrar às técnicas de neurocirurgia com paciente acordado, geralmente indicada em casos de lesões cerebrais que acometem as áreas da linguagem. Há o potencial de redefinir abordagens terapêuticas para transtornos da linguagem como a apraxia de fala pós-cirúrgica ou pós-AVC, individualizando estratégias de reabilitação.
Por Revista Plano B
Fonte Agência Brasília
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