Ao longo dos séculos, a literatura foi definida de diversas maneiras, dependendo da perspectiva de cada estudioso. Entre as definições, uma das mais aceitas é a de que se trata de uma forma de expressão artística capaz de envolver, provocar reflexões sobre a vida e transportar o leitor para outras realidades. Por meio da descrição, lugares até então desconhecidos podem se tornar familiares. Muitos escritores se inspiram nas cidades onde vivem, criando uma conexão direta entre sua vivência e o leitor. A literatura é, em essência, um espelho da experiência humana.
Não é diferente com Brasília. Escritores frequentemente recorrem a suas memórias e ao cotidiano da capital para dar forma às suas obras. Renato Russo é um dos exemplos mais emblemáticos: suas letras apaixonadas ajudaram a consolidar uma imagem sensível e crítica da cidade, estabelecendo vínculos profundos com quem escuta suas músicas. Mas não são só canções — Brasília também pulsa em romances, poemas, autobiografias, contos e cordéis. Autores nascidos aqui ou que adotaram a capital como lar transformam experiências em páginas, criando pontes tanto com quem compartilha esse mesmo chão quanto com leitores que nunca pisaram por aqui.
O maior desafio de quem escreve é transformar ideias em texto, e o Coletivo Maria Cobogó, fundado em 2018, conhece bem esse processo. “O primeiro desafio é sempre o de tirar os textos das ‘gavetas’, as ideias da cabeça e transformá-las no objeto-livro”, relatam. “Como escritoras independentes, todas as etapas da cadeia produtiva do livro são executadas sob nossa responsabilidade. O dia do lançamento tem gosto de final de maratona, de cruzar a linha de chegada investindo, ao mesmo tempo, paixão, tempo e dinheiro. Nem sempre o retorno é garantido, mas até agora temos tido conquistas que nos orgulham, como termos sido finalistas do Prêmio Jabuti.” Em 2020, Fios, de Christiane Nóbrega, foi finalista na categoria infantil. Em 2023, O luto da baleia, de Solange Cianni, figurou entre os finalistas da categoria romance de entretenimento.
Sobre inspirar outras autoras, o coletivo destaca o “desejo de serem ouvidas” e a coragem necessária para escrever: “Temos vários relatos de autoras estreantes que se sentiram motivadas a lançar suas primeiras obras literárias após nos conhecerem. Às vezes, uma palestra, um podcast ou uma participação em feiras pode provocar pequenos rasgos de coragem para que uma mulher escreva e tenha a ousadia de ser lida. Esperamos que o Coletivo Maria Cobogó esteja construindo parte da história das escritoras cerratenses: essa história de ousarmos ser lidas.”
A jornalista e escritora Maíra Valério também traz Brasília em sua bagagem literária e defende que “toda literatura é um ato político”. Para ela, “a escrita pode atuar como resistência e transformação dentro do feminismo já pelo fato de dar às mulheres a chance de amplificar suas próprias ideias, técnicas, estilos e escolhas de angulação temática, fragmentando o que o senso comum calcificou como ‘universal’ (usualmente histórias feitas por e sobre homens brancos de classe média)”.
Ela fala ainda sobre como a cidade deixou marcas profundas em sua escrita: “Brasília é um paraíso artificial, um jardim a céu aberto repleto de obras de arte monumentais que, ao mesmo tempo, esmaga as pessoas com toques de recolher e distâncias calculadas que criam um apartheid entre centro e periferias. Nascer e crescer aqui é uma experiência impressa na minha subjetividade. Amo a cidade e detesto que falem mal dela, mas também sinto uma imensa solidão e tristeza. Temos uma cultura fervilhante no Distrito Federal e imensas possibilidades, mas também há ruídos causados pela hierarquia das estratificações sociais. Tudo isso marca quem sou e, consequentemente, o que escrevo.”
Em alguns livros, Brasília assume papel de protagonista. É o caso de Brasília, gravidade zero, de André Cunha, indicado ao Prêmio Sesc de Literatura 2015. “Esse livro foi um acerto de contas meu com a cidade, na qual falo sobre a dificuldade de ter uma vida diferente em um lugar onde os destinos se parecem tanto: passar em um concurso, virar burocrata, casar, financiar uma casa, bater ponto por trinta anos, aposentar e morrer. O protagonista tenta fazer diferente e se dá mal. Tem opiniões consideradas polêmicas, é mal visto, cancelado, entra num processo de frustração e isolamento. E ainda se vê enredado numa trama de burocracia, termina com o nome no Serasa, no SPC e com dívidas de todos os tipos.”
A literatura brasiliense também floresce em outros formatos. O cordelista Davi Mello defende que a nova modalidade de cordel em áudio “estimula a leitura” e amplia o alcance do gênero: “Por exemplo, professores de escolas do DF e de outros estados encontram o áudio do cordel A festa dos encantos do Cerrado, que fala de um dia em que plantas e bichos se juntaram para homenagear o bioma. A partir do áudio, trabalhado em sala de aula, são encomendados os cordéis impressos. As mídias se complementam, atuam de forma independente, mas também se influenciam.”
Com o apoio do Centro Cultural Banco do Brasil, a literatura de cordel ganhou um espaço especial no sarau Cordéis cerratenses. O cordelista Sabiá Canuto ressalta a importância de eventos como esse: “Cada espaço que se abre para qualquer manifestação cultural é uma oportunidade de tocar as pessoas e comunicar algo para além do cotidiano. É importante que uma manifestação como o cordel, tantas vezes marginalizada ou folclorizada, tenha espaços como o CCBB para mostrar que é uma arte viva, pulsante e em constante reinvenção.”
As histórias em quadrinhos também têm espaço garantido na cena literária local. Desde sua inauguração, em 2021, a Oto Livraria tem promovido lançamentos de livros e HQs, além de um clube do livro mensal. O público é diverso e se encanta com o ambiente do espaço, descrito pelo gerente como “diferente das demais de Brasília”. Ele conta: “Percebemos que muitos dos clientes ficam encantados com a loja por conta de seu ambiente aconchegante, mobiliários de época, acervo distinto e atendimento atencioso. Quem gosta de conversar sobre livros, HQs, discos — enfim, cultura em geral — se sente confortável aqui.”
Mesmo quem deixa a capital não a esquece. A escritora Isabella de Andrade, vencedora do Prêmio Mozart Pereira Soares 2025 e finalista do Prêmio Loba, homenageia Brasília em seus livros e admite uma “obsessão literária” pelo Centro-Oeste: “Eu nasci e vivi em Brasília até os 29 anos. A cidade faz parte da minha infância, adolescência e boa parte da vida adulta. Quando me mudei para São Paulo, o sentimento de pertencimento ao Centro-Oeste se intensificou. Senti falta do Cerrado, das cachoeiras lindas, até do tempo seco. Essas memórias tomaram meu imaginário criativo. Baixo paraíso se passa em uma cidade fictícia na Chapada dos Veadeiros — meu quintal. E o próximo livro também segue esse caminho. Até agora, o Centro-Oeste é minha maior obsessão literária.”
Além dos livros, Brasília abriga mitos e lendas que alimentam o imaginário popular. Um exemplo é o “Mito do Calango Voador”, criado por Tico Magalhães e perpetuado pelo grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro. Inspirado na cultura popular do Cerrado, o mito narra a existência de um calango especial que, ao contrário dos outros, tem a habilidade de voar. Símbolo da força e resistência do bioma, representa também a criatividade e o espírito livre do povo brasiliense — um ícone da identidade cultural local.
Idealizada para interiorizar o desenvolvimento e descentralizar o poder político e econômico do país, Brasília ultrapassou seus objetivos iniciais. Tornou-se um território fértil para narrativas intensas, poéticas, críticas e transformadoras — um verdadeiro berço de histórias e autores que, dia após dia, seguem escrevendo as múltiplas faces da capital brasileira.
Por Aline Teixeira do Jornal de Brasília
Foto: Glenio Dettmar / Reprodução Jornal de Brasília