Com mais de 77,8 milhões de pessoas inadimplentes, o Brasil enfrenta uma crise silenciosa que se alastra por lares de todas as regiões. Os dados de junho do Mapa da Inadimplência da Serasa revelam que cada inadimplente carrega, em média, uma dívida de R$ 6.128. No topo da lista, o cartão de crédito continua sendo o principal vilão, responsável por 27,5% dos débitos.
No Distrito Federal, 61% da população adulta está com o nome negativado — o segundo maior índice do país no recorte por estados. Apesar dos mais de 64 mil acordos de renegociação fechados recentemente, a recuperação financeira ainda parece distante para muitos.
Em um contexto de juros elevados e poder de compra corroído pela inflação, manter as contas em dia se tornou uma verdadeira batalha. E os maiores adversários não são apenas os boletos no fim do mês: falta de planejamento, desemprego e emergências inesperadas agravam um quadro que exige mais do que matemática.
O acúmulo de empréstimos pode facilmente se transformar em uma bola de neve, como vivenciou a brasiliense Fernanda Mori, de 25 anos, auxiliar de logística. À medida que as dívidas se acumulavam e os prazos venciam, ela viu sua capacidade de pagamento se reduzir, tornando cada novo mês um desafio maior para manter as contas em dia. “Todas as dívidas que possuo atualmente são superiores a R$ 1 mil”, conta.
Diante da dificuldade financeira, o descontrole se instalou e as contas não pararam de chegar. “Usei o cartão de crédito para cobrir a falta de dinheiro que eu estava enfrentando na época. Como não conseguia pagar o valor total da fatura, a dívida foi se acumulando até virar uma bola de neve”, relata Fernanda.
Atualmente, a auxiliar de logística evita o cartão de crédito e tenta manter os pagamentos no Pix ou no débito. Ainda assim, admite que não sabe quando conseguirá quitar todas as dívidas. “Quando eu estiver mais estabilizada, com um emprego melhor e surgirem ofertas mais vantajosas”, projeta.
No caso de Eduardo Lugli, de 45 anos, que trabalha na área de contabilidade, o endividamento veio do uso descontrolado do cartão de crédito e da contratação de empréstimos bancários. “O que me levou a atrasar as parcelas foi a falta de um planejamento financeiro adequado e o desejo de dar uma vida de conforto à família, porém incoerente com a nossa renda familiar”, afirma. “Somado a isso, nos últimos tempos, o custo de vida aumentou muito, fazendo com que as dívidas se acumulassem”, completa.
Praticamente, toda a renda da família é utilizada para pagar as dívidas e o cartão de crédito acaba sendo utilizado para custear despesas de primeira necessidade, empurrando os débitos em atraso para o próximo mês, como explica o contador. “Pretendo realizar um planejamento financeiro, adequando os gastos mensais à receita familiar, realizando o corte das despesas supérfluas e renegociando as dívidas, buscando melhores condições de pagamento em comparação com as condições das dívidas atuais.”
Bancos
De acordo com os dados do Serasa, bancos e cartões de crédito lideram entre os principais responsáveis pela negativação no país, com 27,5% do total das dívidas. Em seguida, aparecem as contas de serviços essenciais como luz, água e gás (20,7%), financeiras não bancárias (19,4%) e, por último, serviços (11,8%).
Para o porta-voz da Serasa, Giovani Inocente, o atual patamar elevado de juros no país torna o cartão de crédito ainda mais nocivo para o orçamento das famílias. “O cartão acaba sendo o principal vilão das dívidas porque as pessoas, em geral, não têm uma economia ou uma reserva de emergência. Então, qualquer imprevisto já desestabiliza o orçamento, o controle se perde e a dívida cresce rapidamente por causa dos juros”, avalia.
Diante de um cenário econômico instável, especialistas recomendam estratégias de proteção financeira. Construir uma reserva de emergência e manter flexibilidade no orçamento são medidas consideradas essenciais. Ao mesmo tempo, é preciso ter cautela com o uso do cartão de crédito e evitar empréstimos que possam aprofundar o endividamento.
Entre as principais causas da inadimplência bancária estão a perda de renda e o desemprego — fatores que, segundo Inocente, compõem um cenário ainda mais delicado, exigindo cautela e foco nas prioridades básicas. “Em qual momento eu terei um novo emprego? Qual é a perspectiva disso, para depois começar a olhar isso de forma saudável? Porque, às vezes, pegar uma reserva, que é para o sustento, investir em pagar dívidas, também não sei se faz sentido. E daqui a pouco vai ficar mais apertado. Então, é muito desafiador esse momento”, pondera.
Desenrola
Embora tenha beneficiado cerca de 15 milhões de pessoas, segundo dados do governo federal, o programa Desenrola Brasil ainda não conseguiu reduzir os índices de inadimplência para níveis inferiores aos registrados no período pós-pandemia.
Apesar disso, o porta-voz da Serasa, avalia que a iniciativa teve impacto positivo, especialmente ao estimular a economia, embora não tenha promovido uma mudança de comportamento entre os consumidores. “Acredito que o comportamento do usuário acaba não sendo preventivo, mas sim só corretivo. E isso acaba trazendo, novamente, esse cenário de aumento da negativação”, observa.
“Em maio, tínhamos 77 milhões de inadimplentes; já em junho, registramos 77,8 milhões. São 800 mil a mais no Brasil. Isso preocupa, porque mostra a falta de manutenção preventiva e de consciência. Seguimos atuando no reativo, que é o que também fazemos na Serasa”, completa Inocente.
Educação financeira
A falta de educação financeira ainda é um dos principais entraves para o controle das finanças pessoais no Brasil, avalia o especialista e PhD em Educação Financeira, Reinaldo Domingos. Para ele, grande parte da população não tem o conhecimento necessário para compreender o funcionamento do crédito e as consequências do endividamento. “Muitos brasileiros utilizam o crédito sem ter uma visão clara de como ele impacta seu orçamento, o que leva ao acúmulo de dívidas”, avalia.
Além disso, o especialista alerta que há uma cultura de consumo imediato e parcelado, alimentada por uma oferta excessiva de crédito, o que facilita o endividamento. “As pessoas acabam entrando em um ciclo vicioso: quando tentam resolver suas dívidas, muitas vezes, não recebem a educação financeira necessária para entender como não voltar a cair nesse problema.”
Segundo ele, esse efeito cria uma espécie de “bolha” de crédito mal estruturada, onde o foco está apenas em combater o efeito das dívidas e não a causa principal, que é a falta de conscientização financeira. “Portanto, o controle das finanças pessoais no Brasil ainda é muito difícil porque o sistema atual, de crédito e consumo, não promove uma educação financeira eficiente, deixando as pessoas vulneráveis a escolhas financeiras equivocadas”, complementa.
Embora frequentemente apontado como um dos grandes vilões do endividamento, o cartão de crédito nem sempre representa um problema. Pelo contrário, se usado de forma consciente, pode ser uma ferramenta financeira vantajosa. É o que explica Rogério Olegário, consultor financeiro pessoal da Libratta, que destaca seu potencial como meio de pagamento mais eficiente do que outras opções.
“Particularmente, acho que o cartão de crédito é a melhor forma de pagar. Com ele, acumulo pontos que posso trocar por passagens aéreas, descontos em postos de gasolina, cinema, entre outros”, afirma. Para ele, o cartão pode ser uma ferramenta mais vantajosa do que opções como Pix ou débito. No entanto, reforça a importância de usá-lo com responsabilidade. “É preciso entender que o cartão deve ser um meio de pagamento, e não uma forma de adquirir crédito”, alerta.
O especialista em finanças comportamentais e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jurandir Sell, compara o uso do cartão de crédito à condução de um carro. “Carro é uma coisa boa? Sim. É muito bom ter um carro, desde que você saiba utilizá-lo corretamente. Caso contrário, você pode beber, dirigir e matar uma pessoa. Se matar, poderá ir preso, enfim. Então, o cartão de crédito, se você sabe usar, é bom. Se você não sabe usar, por favor, pare agora”, aconselha.
Independentemente da forma de pagamento — seja crédito, débito ou Pix — o essencial, segundo especialistas, é manter a saúde financeira em dia e evitar armadilhas que podem comprometer o orçamento. Para isso, planejamento, reservas de emergência e discernimento no consumo são aliados fundamentais.
(Colaborou Alan Resah)
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Valdo Virgo