A decisão do Conselho de Ética da Câmara de arquivar o processo contra Eduardo Bolsonaro (PL-SP) abriu um racha de interpretações no meio político e jurídico. Enquanto parlamentares como Duda Salabert (PDT-MG) e Lindbergh Farias (PT-RJ) classificam a medida como “vergonhosa” e “desmoralizante” para o Parlamento, o presidente do colegiado, Fábio Schiochet (União-SC), defende que todo o rito processual foi seguido à risca e que, caso o processo siga para o plenário, as chances de reversão são mínimas. Já especialistas ouvidos pelo Correio avaliam que o episódio revela a crise ética e o uso político das instâncias disciplinares da Casa, apontando que o caso vai muito além de uma disputa partidária e põe em xeque os limites da imunidade parlamentar.
Lindbergh Farias apresentou um recurso ao plenário contra o arquivamento. O documento reuniu 86 assinaturas de parlamentares, número bem acima das 52 exigidas pelo Regimento Interno. Segundo a justificativa, “o arquivamento sumário da representação criaria precedente gravíssimo, legitimando atos de deslealdade constitucional e desrespeito às instituições”. “Reverter essa decisão é, portanto, um ato em defesa da própria Câmara e do Estado Democrático de Direito”, completou.
Para Duda Salabert, as falhas do Conselho de Ética tiveram início com o episódio que originou o processo contra o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que usou uma peruca loira no plenário, em 2023, debochando de pessoas trans e de comunidades LGBTQIA . “Tudo começou naquele momento de escárnio, de desrespeito às minorias. O arquivamento dessa representação é a prova de que a Comissão de Ética perdeu sua função institucional”, afirmou. A deputada destacou que pretende recorrer da decisão e protocolar um novo pedido. “Eu vou entrar novamente com o processo, porque não posso aceitar esse tipo de conivência com um parlamentar que trabalha contra sua nação e ainda é remunerado para isso”, disse ao Correio.
Duda criticou duramente a omissão do colegiado. “A Comissão de Ética não tem servido ao propósito que deveria. Em vez de defender a imagem do Parlamento, tem contribuído para sua desmoralização. É por isso que, além da ação do governo, estou entrando com uma nova representação”, declarou.
O líder do PSB na Câmara, Pedro Campos (PSB-PE), afirmou que a decisão do colegiado representa “um recado muito ruim para a sociedade”. “Esse arquivamento representa muitas coisas ruins. A primeira é permitir que um deputado, em exercício do mandato, trabalhe contra o seu próprio país. E isso é um absurdo. Ir para outro país e, no exercício do mandato, trabalhar por sanções que prejudicam os trabalhadores e empreendedores do Brasil é algo gravíssimo”, frisou.
Campos também criticou a falta de reação de setores da direita, que, segundo ele, “se acovardaram diante da família Bolsonaro”. “O que nós sentimos é que os próprios parlamentares de direita ficam envergonhados com a situação, mas não têm coragem de agir. Viraram verdadeiros reféns da família Bolsonaro e do deputado Eduardo Bolsonaro”, declarou.
Ele defendeu que a Câmara e o Judiciário busquem caminhos para reverter o caso. “É possível, sim, buscar caminhos de recurso para que essa situação vexatória não permaneça. Deputado federal é para trabalhar pelo Brasil e pelo povo brasileiro, não para usar as prerrogativas do mandato para boicotar o país e gerar desemprego”, completou.
Por telefone, o deputado Fábio Schiochet (União-SC) conversou com o Correio e defendeu a lisura do processo, ressaltando que o arquivamento foi legítimo. “Cabe a mim, como presidente do Conselho de Ética, garantir que o rito processual seja seguido da melhor forma possível, conforme determina o nosso Código de Ética. E isso foi feito. O relator apresentou um parecer preliminar pelo arquivamento, e, por 11 votos a 7, esse parecer foi aprovado”, destacou.
Schiochet disse que eventuais questionamentos ao plenário e às comissões sobre as faltas de Eduardo Bolsonaro não competem ao Conselho de Ética. “As questões das faltas cabem ao presidente da Câmara e à Mesa Diretora. O regimento diz que um deputado não pode ter menos de 70% de presença na Casa, mas essa verificação não cabe a mim”, explicou.
Para o parlamentar, as críticas ao colegiado têm caráter político. “Essa questão não é jurídica, é política. No campo da política, os membros do colegiado entenderam que o parecer do relator tinha que ser aprovado pelo arquivamento”, ressaltou.
Ele observou ainda que eventuais recursos dificilmente terão sucesso. “Eles podem fazer um recurso regimental para o plenário. Agora, eu imagino que não vai ter sucesso algum, porque todo o rito foi seguido da maneira correta, conforme diz o Código de Ética e o Regimento Interno”, acrescentou.
Um dos 11 deputados que votou pelo arquivamento foi Gilson Marques (Novo-SC), que defendeu a decisão do Conselho de Ética, argumentando que a cassação de mandato por declarações públicas fere o princípio da liberdade de expressão parlamentar. “Não vejo motivo para cassar um parlamentar pelo que ele fala no exterior, ainda que alguns considerem besteira ou ‘ataque’. Esse era o objeto desse processo e da votação. Se formos cassar deputados pelo que falam ou supostamente prejudicam, teríamos que cassar quase todos. E se proibirmos político de falar o que pensa, como saberemos em quem votar?”, questionou.
Apesar de defender a absolvição de Eduardo, Marques reconheceu a gravidade das ausências parlamentares e defendeu punição automática. “Entendo que é, sim, necessário respeitar o número mínimo de presenças para continuar como deputado. Mas isso é outro processo e, na minha opinião, a cassação deveria ser automática, sem necessidade de representação no Conselho de Ética”, completou.
Desgaste
Para especialistas, o episódio expõe a fragilidade das comissões de ética e o uso político das punições parlamentares, além de reforçar o desgaste institucional do Congresso diante da sociedade. Professor de direito constitucional da FGV Direito SP, Rubens Glezer afirmou que o episódio é um “caso gritante de seletividade” dentro do Parlamento. “Estando dentro de um pacto político, os casos são arquivados. Estando fora, existe a sanção, sob o discurso de que há um padrão ético e reputacional a ser protegido. Essa instituição se pauta, principalmente, por esse tipo de relação política-partidária, e não pelo cumprimento de sua missão institucional”, acrescentou.
O professor criticou a atuação de Eduardo, por se aliar a outro país para arquitetar contra sua própria nação, o que, segundo ele, já é motivo de sobra para a cassação. “Ele, de forma não institucional, procura a maior potência bélica e comercial do planeta e estabelece uma relação que tentava blindar o relacionamento com o governo e com outros representantes eleitos do povo, para que essa potência exercesse sanções contra o país em benefício do seu grupo político. Isso não é compatível com o exercício da atividade representativa da população brasileira”, enfatizou.
O cientista político Leonardo Paz Neves, da FGV, classificou o arquivamento como um caso sem precedentes na história política brasileira. “Eu não consigo lembrar nenhum caso em que um deputado tenha se ausentado da Câmara durante tanto tempo e tenha permanecido. E não tenho lembranças de nenhum caso em que, com tamanha quantidade de evidências, um representante do Legislativo tenha articulado com um governo estrangeiro ações que atingem negativamente o Estado brasileiro”, observou.
Para Paz Neves, o caso é “chocante” e deveria ter tido desfecho oposto. “Quando o governo Trump está com tarifas, ele está atacando todo o Estado. Esse caso deveria ser super-simples de ser dirigido, o que só aumenta o absurdo dessa decisão. O governo brasileiro teve que criar, no mínimo, um pacote de R$ 30 bilhões para conter os efeitos dessas tarifas. O nome disso é o custo da família Bolsonaro”, frisou.
O cientista político também disse que o episódio representa uma dupla violação ética. “A ausência, por si só, já seria uma questão ética suficiente. Mas essa ação concreta contra o Estado brasileiro é um crime gravíssimo em qualquer país do mundo. É inacreditável que essa decisão tenha sido arquivada dessa maneira e, até agora, parece-me haver uma baixa repercussão dela”, completou.
O professor Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), avaliou que o arquivamento tem um efeito político devastador e reforça o desgaste institucional da Câmara. “O arquivamento repercute muito mal. Tem um efeito muito negativo para a sociedade. A Câmara já vem demonstrando um desgaste em função da PEC da Blindagem e do esforço de paralisar as atividades congressuais para garantir impunidade a deputados”, argumentou.
Segundo ele, a reação social tende a crescer à medida que o recurso apresentado pelo PT ao plenário ganhe visibilidade. “A pressão vai aumentar muito. Como no plenário a visibilidade é maior, diferentes segmentos da sociedade tendem a acompanhar esse processo e essa votação. Então, a pressão sobre esses deputados que vêm atuando contra o interesse da maioria tende a crescer”, explicou.
Ele também alertou que o caso expõe a força da extrema-direita no Congresso e o risco que representa para a democracia. “Hoje a extrema-direita tem um peso e uma importância muito grande no Congresso. E se caracteriza muito por ser ideológica, por vezes, sequer cedendo à pressão eleitoral, buscando valer seus próprios interesses. Estamos falando de um deputado da família Bolsonaro que articulou junto ao governo norte-americano sanções comerciais extremamente pesadas contra o Brasil, num verdadeiro atentado à soberania nacional”, ressaltou.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados