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quinta-feira, abril 24, 2025

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Aécio Neves: “Tancredo estaria indignado com o que acontece no Brasil”

Ex-governador de Minas Gerais, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ex-senador da República, ex-parlamentar...

Ex-governador de Minas Gerais, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ex-senador da República, ex-parlamentar constituinte, o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG) é um dos nomes relevantes da política brasileira nas últimas quatro décadas — não apenas pela trajetória, mas, também, pela herança política. Neto de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito depois de 21 anos de ditadura militar, foi secretário particular do avô e todo tempo esteve ao lado dele — da vitória no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, à morte, em 21 de abril do mesmo ano. A eleição de Tancredo concretizou a Nova República e abriu caminho para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição de 1988. Nesta entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, Aécio revisita os bastidores do processo de redemocratização, reflete sobre a transição liderada por Tancredo, a atuação de José Sarney — seu vice guindado à Presidência da República por circunstâncias que jamais imaginara —, os impasses na Constituinte e os dilemas da política brasileira atualmente — entre eles, o crescimento da extrema-direita, o julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado e nas depredações das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, e a crise de representatividade que, conforme avalia, abriu espaço para discursos radicais.

Como o senhor definiria e explicaria os três personagens: Ulysses Guimarães (ex-presidente da Câmara dos Deputados e figura central do PMDB no processo de redemocratização), João Figueiredo (último general presidente da ditadura militar) e Leônidas Pires Gonçalves (ministro do Exército escolhido por Tancredo e que continuou com Sarney)?

São figuras muito distintas e de importância variada na cena política brasileira do último século. Ulysses foi um grande timoneiro no processo de redemocratização. A redemocratização do Brasil foi, talvez, a mais bem executada obra de engenharia política da nossa história contemporânea, e ela teve vários artífices. Ulysses, sem dúvida, foi um deles, com sua firmeza, serenidade, capacidade de liderança e coragem pessoal. Acho que o Brasil deve muito ao papel de Ulysses Guimarães para termos, hoje, a possibilidade de viver num país com todas as dificuldades, mas em democracia plena. Figueiredo foi o último presidente da República militar, que cumpriu ali o seu papel, sempre dando a impressão de que o fez a muito contragosto. Tenho dificuldade de falar dos defeitos, mas fico com o aspecto de que, se não é positivo do ponto de vista pessoal, teve um papel central no processo (de redemocratização). Por vontade própria ou não, permitiu que a transição (da ditadura para a democracia) fosse concluída. O general Leônidas foi um democrata nas Forças Armadas. Teve um papel relevante nesse momento da transição, até porque tinha uma grande autoridade sobre os setores militares. Esse processo de redemocratização esteve sob risco desde o início da candidatura do Tancredo até a posse do Sarney. A figura do general Leônidas teve papel relevante na fase final, garantindo a consolidação da transição.

Ele foi escolhido por Tancredo exatamente por causa da ponte que fazia com os militares?

O Tancredo teve uma grande preocupação naquele último momento. Na noite de 14 de março, antes da posse, ele fez questão de assinar os atos de nomeação do ministério. Isso foi extremamente importante. Todos achavam que ele tomaria posse no dia seguinte. Ele queria tomar algum medicamento para possibilitar a posse e, depois, seria submetido à cirurgia, porque resistiu o quanto pôde, exatamente pelo risco de o presidente Figueiredo não dar posse ao Sarney — e isso era anunciado à época. Esse episódio tem a participação do general Leônidas. Quando fica claro que Tancredo não tomaria posse, o general Walter Pires, então ministro do Exército, comunica ao general Leônidas que estaria voltando ao ministério. Mas o chefe da Casa Civil do Figueiredo, ministro (João) Leitão de Abreu, responde: “O senhor não deve ir, porque o senhor não é mais o ministro do Exército. O ministro é o general Leônidas Pires Gonçalves”. Acho que foi uma premonição do Tancredo. Já acamado, com dores, ele fez questão de assinar os atos. O ministro José Hugo (Castelo Branco), que seria chefe da Casa Civil, chegou com os atos de nomeação. Tancredo não quis receber o ministro, mas disse: “Tragam aqui, eu preciso assinar essas nomeações”. Ele sabia que aquilo, talvez, fosse o ato final da transição. Sem isso, talvez tivesse sido aberta uma brecha para os inconformados nas Forças Armadas, como o general Sylvio Frota e outros, que resistiam à transição.

Na avaliação do senhor, qual foi o principal mérito do governo Sarney no processo de consolidação da democracia?

Sarney teve muitos méritos. Ele teve uma longa militância na Arena, mas se uniu a outros democratas — como Marco Maciel e Aureliano Chaves — e fundaram a Frente Liberal. Essa frente foi a senha para que Tancredo deixasse o governo de Minas e pudesse disputar no campo adversário, o Colégio Eleitoral, a eleição presidencial. Sarney foi essencial politicamente. O ato mais importante foi a convocação da Assembleia Constituinte, compromisso de campanha do Tancredo, e a liberdade que deu à Constituinte para construir o texto final. Talvez com Tancredo, a Constituição tivesse uma coluna vertebral mais clara, já encomendada ao (jurista) Affonso Arinos. Mas Sarney não tinha o respaldo político e popular de Tancredo para tomar medidas duras. Mas reforço que Sarney foi essencial. Uma vez, em Belém do Pará, durante o Círio de Nazaré, no meio da multidão, perguntei a Tancredo: “O que o senhor vai fazer com toda essa popularidade?” Ele respondeu: “Vou gastar em três meses”. Demorei três meses para entender. Ele sabia que precisava daquele apoio do país para tomar medidas impopulares, duras, de contenção de gastos. Sarney não teve essa condição, o que agravou a crise e resultou em hiperinflação.

Na Constituinte, quem teve grande protagonismo foi Ulysses. Se Tancredo tivesse assumido, essa liderança teria sido mais equilibrada?

Acho que são momentos diferentes. Conheci Ulysses de perto. Eu era um espectador privilegiado da cena política. Sentava ao lado dele, do Tancredo, escutando. Ulysses seria o candidato nas (eleições presidenciais) diretas com o apoio de Tancredo e de todos os outros. Quando as diretas fracassam, e Tancredo é escolhido para a eleição indireta, Ulysses poderia ter sentido frustração. Mas foi firme ao lado do Tancredo o tempo inteiro. Eles tinham uma sinergia muito grande. Morávamos na 206 Sul, em Brasília, e Ulysses ia diariamente tomar café com Tancredo. O (jurista) Thales Ramalho dizia que eles dançavam uma música que só os dois conheciam os passos. Quem tentasse se meter acabava tropeçando. Então, não acho que Tancredo se incomodaria com o protagonismo de Ulysses na Constituinte. Eles se completavam. Tancredo queria uma Constituição com viés mais parlamentarista. Sarney, ao contrário, permitiu que a Constituinte começasse do zero. Ulysses foi o timoneiro, mas havia também um grupo de guardiões, como Nelson Jobim, Fernando Henrique Cardoso, Mario Covas, Bernardo Cabral, entre outros, que ajudaram a conter exageros.

Estamos celebrando 40 anos de redemocratização. Mas, ao mesmo tempo, assistimos aos julgamentos de pessoas que tramaram um golpe de Estado. Isso que dizer que a ditadura jamais foi superada?

Acho o contrário. Isso demonstra a importância da Constituição de 1988. A Constituição permitiu que, mesmo diante de tantas crises — dois impeachments presidenciais, três anos de recessão com o governo Dilma, uma tentativa de golpe —, as instituições se mantivessem firmes. A Constituição foi criticada por muitos, inclusive pelo PT, que não votou nela. (O hoje presidente) Lula, como deputado, subiu à tribuna e disse que não a assinaria. Três deputados do PT (Bete Mendes, Ayrton Soares e José Eudes) que votaram com Tancredo (no Colégio Eleitoral) foram expulsos. Isso é história. Hoje, o PT celebra a Constituição como a melhor da história, mas votou contra. Mesmo assim, a Constituição sobreviveu e permitiu que a democracia resistisse a todas essas turbulências. Ela é a grande responsável pela superação das crises, sem retrocessos institucionais. A democracia é muito sólida, (tanto que) no ano que vem estaremos escolhendo novos políticos para comandar o país.

A anistia de 1979, um dos marcos do processo de redemocratização, pode ser comparada à que se propõe, hoje, na Câmara dos Deputados para os envolvidos na tentativa de golpe depois das eleições de 2022?

São momentos absolutamente distintos. A anistia de 1979 foi um gesto de pacificação, necessário àquele momento. Permitiu uma transição sem derramamento de sangue. Era um pacto político. A ditadura ainda sobreviveu por mais alguns anos após a anistia, mas esse gesto foi essencial para preparar o caminho para a democracia. Hoje, vivemos um cenário diferente. Eu torço pela pacificação nacional, mas é preciso separar os responsáveis pelos atos de 8 de janeiro de 2023 daqueles que estavam ali, inadvertidamente, sem plena consciência do que acontecia. Muitos já cumpriram pena suficiente. Há uma discussão legítima sobre a dosimetria das penas. Eu mesmo tenho conversado com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com líderes do Congresso e com o presidente da Câmara (Hugo Motta). Existe um esforço para distinguir entre os articuladores do golpe e aqueles que apenas participaram, às vezes até sem saber exatamente as consequências. Esses devem ser punidos de forma mais branda. A minha preocupação é esse projeto de anistia ser votado como ele está. O embate não será na Câmara ou no Senado, será na sociedade. A polarização que assistimos em 2018, quando famílias e amigos deixaram de se falar, vai começar a voltar — e isso não interessa ao Brasil. Temos de ser duros e rígidos com quem articulou (a tentativa de golpe), mas aqueles que estavam ali, inadvertidamente, não podem receber penas tão duras. O Brasil precisa andar para frente. Essa polarização aguda de 2018, a que assistimos em 2022, tem a participação do PT, que sempre quis o país dividido ao meio. Mas é preciso deixar claro que o Brasil não é tão raso, que se resuma a esses dois extremos que se retroalimentam. Eles são úteis um para o outro.

Tancredo era conhecido pela habilidade de conciliar adversários que se pensavam inconciliáveis. Hoje, políticos com o perfil do seu avô teriam espaço ou seriam engolidos pelo radicalismo?

A política do diálogo, da convergência, está muito ausente da realidade atual. O plenário da Câmara, que presidi, tornou-se um local insalubre. Os extremos se digladiam. Cada um quer ganhar mais likes, e não mais construir soluções. Quanto mais ataques, mais apoio têm. Isso empobrece a política. As pessoas estão cansadas dessa política de ataque, na qual você precisa derrubar o outro. Aqui (na Câmara) não se discute mais propostas, projetos. Tancredo era conciliador, mas também era um homem de coragem pessoal. Foi ministro da Justiça de Getúlio Vargas, esteve com ele até o fim. Quando (o presidente) Getúlio se suicidou, Tancredo estava com ele no quarto. No auge da ditadura, acompanhou Juscelino (Kubitschek, ex-presidente) em todos os inquéritos, mesmo quando todos se afastaram. Na renúncia de Jânio (Quadros, ex-presidente), foi Tancredo quem articulou a posse de Jango (Goulart, ex-presidente). E quando (o general Humberto) Castelo Branco foi indicado presidente, foi o único deputado do PSD a votar contra. Esses gestos mostram coragem. E é isso que falta hoje: coragem com sabedoria. O Tancredo era completo. E faz muita falta.

A política brasileira desceu de nível nesses 40 anos?

Piorou muito. A influência das redes sociais é imensa hoje. Hoje não se tem espaço para construção de carreiras políticas. As carreiras políticas são meteóricas, tanto as subidas quanto as quedas são muito rápidas. Certa vez, um deputado falou para Ulysses: ‘Esse Congresso está muito ruim’. E ele respondeu: ‘Espere para ver o próximo Congresso’. Ulysses já antevia esse empobrecimento. Ainda assim, vejo sinais de mudança. Nas eleições de 2024, os extremos que radicalizaram perderam. Quando buscaram alianças ao centro, venceram. Isso mostra que há um certo cansaço com o confronto. O Brasil quer voltar a falar com a razão, não com a raiva.

O senhor crê que a anistia de 1979 deixou lacunas que alimentam o radicalismo de agora?

Não acredito. O que alimenta o radicalismo atual é a ausência de política, de diálogo. (O ex -presidente Jair) Bolsonaro se elegeu como antipolítico, como antissistema. Muitos se elegeram nesse vácuo e, depois, se mostraram até piores do que aqueles que criticavam. Hoje vivemos consequência desse vácuo, que levou a essa radicalização. E acho que não tem mais a força de antes. Acredito que, em 2026, a força dos extremos não será tão grande como foi em 2018 e 2022.

O Brasil errou e continua errando no tratamento dado aos militares?

Eu era presidente da Comissão de Relações Exteriores (da Câmara dos Deputados) e logo quando Bolsonaro tomou posse, o general (Walter) Braga Neto deu um depoimento na Comissão de Defesa Nacional. Ali, eu fiz uma pergunta para ele: ‘O senhor não teme que isso pode acarretar um fracasso do governo Bolsonaro. Isso não pode respingar nas Forças Armadas?’ Ele disse que não, que o governo teria êxito, que eram poucos (os radicalizados). E, no fim, o que assistimos foi uma contaminação das Forças Armadas pelo excesso. Não é que deve ser vetado, mas a excessiva participação de militares no governo Bolsonaro contaminou as Forças Armadas. Não se trata de impedir que militares contribuam, mas quando isso é feito em larga escala, os danos são inevitáveis. Destaco o gesto do presidente Fernando Henrique Cardoso, que nomeou um civil para o Ministério da Defesa. Foi, sim, um gesto marcante e simbólico. Mas acredito que a imagem vai se recuperar, pois o ministro (da Defesa José) Múcio faz um trabalho de pacificação, de resgate do papel das Forças Armadas. E os inquéritos estão separando o joio do trigo, os que acharam que podiam se aproveitar de um determinado momento para voltar a ter um poder permanente, sem a participação da população. No Brasil, essas pessoas não terão mais espaço. Governará o país quem tiver apoio, voto e quem cumprir a Constituição.

Como o senhor vê o avanço da extrema-direita?

É um fenômeno mundial. Mas eu acho que isso é ausência da política que leva a isso. E o que é a política? É a capacidade de você construir pontes, caminhos, consensos. Tem questões que não são essenciais para o Brasil e que só servem para alimentar esse confronto, que estimulam o confronto no vácuo da política. Quando a política se ausenta, o extremismo avança. É um fenômeno mundial, mas por razões distintas. Por exemplo: na Europa, tem muito a questão migratória, a fragilidade econômica e vai criando sentimento xenófobico. Aqui no Brasil, nós vivemos um vácuo político, que possibilitou que figuras extremistas ocupassem um espaço, que eu acredito que não seja definitivo. A esquerda do Lula, o petismo vai ter sempre 30% históricos. A direita radical também terá sempre seus 20% a 25%, com Bolsonaro ou sem. Cabe ao centro conversar com o restante da população, com os 40%, 50%, que foi sempre o eleitor de centro, que vota hoje pela exclusão. Muitos votaram no Lula por não gostarem de Bolsonaro e vice-versa. Não está perdido. Nós temos que voltar a falar com essas pessoas. A causa não está perdida. O Brasil não é esse país extremado que a disputa política retrata.

Tancredo foi vítima de erro médico?

Foi erro de uma enorme incompetência médica e, depois, de um processo que não se conseguiu reconstruir. Ele estava sendo monitorado por médicos e, em nenhum momento, alertaram nem a ele e nem a nós, da família, de que era irreversível. Ele insistiu para que fosse operado só após a posse, com receio de que Sarney não pudesse assumir. Mas em momento nenhum foi dito: precisa fazer a cirurgia agora, pois o senhor corre risco de vida. A primeira cirurgia dele, no Hospital de Base, em Brasília, foi uma tragédia. Depois, descobrimos na investigação que tinha mais de 30 pessoas na sala de cirurgia, curiosos. Depois, foi para São Paulo e não teve mais jeito. Não gosto de culpar pessoas, mas foi uma imprudência grande. Naquela noite do dia 14 (de março de 1985), eu queria ir (com Tancredo) para São Paulo. Eu tinha um avião parado, à espera, mas os médicos não permitiram. Infelizmente, o destino não permitiu que ele fosse presidente. Mas permitiu que a luta de sua vida se concretizasse e que, hoje, comemoramos 40 anos de democracia. Ele estaria feliz de ver que, apesar de todos episódios graves que vivemos nos últimos anos, a democracia sobreviveu e vai continuar sobrevivendo.

O senhor acha que Tancredo teria vergonha do que se vê na política no Brasil de hoje?

Acho que mais do que vergonha. Ele estaria indignado com o que acontece no Brasil. Tancredo era um homem culto, preparado. Ver a política sendo tratada de forma rasa, radical, desprovida de um projeto nacional, o entristeceu profundamente. Nós, que comungamos de sua visão, sentimos essa frustração todos os dias. Mas seguimos lutando para que o Brasil reencontre seu rumo, que esse quadro não se eternize, pois nossos filhos e netos não merecem viver num país dividido pelo bolsonarismo e pelo petismo. Nós precisamos que surjam lideranças para ocupar esse espaço.

Por Fabio Grecchi e Vanilson Oliveira do Correio Braziliense

Foto: Luís Nova/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense

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