Ex-governador paulista, ex-presidente da Assembleia Constituinte de 1891, ex-senador da República, primeiro presidente civil eleito pelo voto “popular” no Brasil, festejado representante da elite paulista em ascensão no país, Prudente José de Morais Barros conhecia muito bem os ritos, os símbolos e as cerimônias do Poder. Ao descer do trem, naquele dois de novembro de 1894, no Rio de Janeiro, para a sua posse como presidente eleito, no dia 15 de novembro próximo, aniversário da República, a cena que contemplou, mais do que uma recepção foi uma advertência do que estaria por vir.
No saguão da estação não havia ninguém para recebe-lo. Ninguém também o aguardava no Hotel dos Estrangeiros. No dia seguinte, ainda ignorado, enviou um telegrama para o marechal Floriano Peixoto, solicitando uma audiência para tratar da transmissão de cargo. Alegando falta de tempo, Floriano, alguns dias depois, informou que receberia o presidente eleito oportunamente. O
encontro nunca aconteceu!
Devidamente vestido para a posse naquele 15 de novembro de 1894, Prudente de Morais, ainda ignorado, teve que alugar um transporte. Sem pompa ou cerimônia, dirigiu-se para o Palácio do Conde dos Arcos, sede do Senado, onde se deparou com o secretário de Floriano Peixoto, Cassiano do Nascimento, que, em nome do marechal, em breves palavras, lhe passou o cargo de presidente da República. Voltou para hotel, socorrido pelos préstimos do embaixador da Inglaterra que lhe ofereceu uma carona. Certamente uma ironia britânica que iria invadir, meses depois, a Ilha da Trindade — situada no litoral do Espírito Santo — sob o pretexto de ali instalar uma estação telegráfica.
Na manhã seguinte, ao chegar no Palácio do Itamaraty — então sede do governo —, o recém-empossado presidente da República seria, mais uma vez, recepcionado por agonias e embaraços. Nenhum único funcionário, a maioria dos móveis haviam sido levados, em desalinho uns poucos armários com suas gavetas vazias, em um canto restava a única poltrona desfigurada por baionetas. Tempos difíceis se prenunciavam!
A economia estava em pandarecos, os efeitos do “encilhamento” permaneciam. Nos quarteis, o militarismo positivista continuava evidente e mobilizado. No Rio Grande do Sul, grupos divergentes de homens em armas brandiam autonomia e, de certo modo, o separatismo. Logo a Guerra de Canudos, que sacrificou mais de 25 mil pessoas no interior da Bahia em 1897, comandada pelo messiânico e carismático cearense Antônio Conselheiro, assustaria e desnudaria o país. A revolta mobilizou e quase desmoralizou o Exército brasileiro.
A face mais extravagante do país iria se mostrar no dia 5, na verdade, de novembro de 1897, quando Marcelino Bispo, (um anspeçada — função inferior ao cabo na hierarquia militar, hoje inexistente) com uma faca em punho, tentou matar Prudente de Morais. A cena se deu no pátio do Arsenal de Guerra — hoje
Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro — e ceifou a vida do marechal Carlos Machado Bitttecourt que, ao tentar defender o presidente, recebeu os golpes fatais. As investigações do atentado responsabilizaram 22 pessoas, incluindo o vice-presidente da República, Manuel Vitorino Pereira, e o líder republicano paulista Francisco Glicério. E mais: ficou esclarecido ainda que aquela não teria sido a única tentativa do assassinato do presidente. Dois outros haviam sido organizados, mas não percebidos por Morais.
Enquanto claudicava a republica fumegante, no Planalto Central, a Comissão Cruls, que se dividiu em duas etapas — 1892/1893 e 1894/1895 — concluía seus relatórios parciais apresentando-os em 1896. No Aviso do Ministro da Agricultura, Antônio Francisco de Paula Souza, ao Marechal Floriano Peixoto, de 1893, com base num informe ao ministério feito pelo próprio Cruls, lê-se: 1) Demarcação da zona reservada para o Distrito Federal, com uma extensão de 14.400 quilômetros quadrados, e limitada por dois arcos de paralelo e dois arcos de meridiano; 2) Levantamento de itinerários percorridos, numa extensão de cerca de 4.000
quilômetros; 3) Levantamento das lagoas Feia, Formosa e Mestre d’Armas; 4) Medição de despesas dos rios Corumbá, Congonhas, do Ouro, Areia , Descoberto, Alagado, Santa Maria, Palmital, Saia-Velha, Mesquita, Sant’Ana, Papuda, Paranoá, Mestre-d’Armas, Piripau, Preto e Jardim; 5) Declinação magnética em Pirenópolis, Entre-Rios, Santa Luzia, Formosa e Goiás; 6) Posição geográfica de grande número de pontos e suas altitudes; 7) Diferenças de longitude pelo telégrafo elétrico entre Goiás, Uberaba, São Paulo e a capital federal; 8) Estudo de geologia da região explorada; 9) Coleção mineralógica e botânica da mesma região; 10) Plantas das cidades de Catalão, Pirenópolis, Santa Luzia, Formosa, Goiás e Mestre d’Armas; 11) Fotografias de grande número de vistas.
Entre o final da primeira etapa dos trabalhos da Comissão e o início da segunda fase, certamente inspirados na Mensagem de 3 de maio de 1893, de Floriano Peixoto, na abertura dos trabalhados legislativos, os deputados Fleury Curado e Berlamino Mendonça, apresentam um projeto já propondo a organização e construção da nova capital. Em detalhados 12 artigos, os parlamentares defendiam, em agosto de 1893, o estabelecimento imediato de uma “administração provisória na zona federal demarcada” que teria uma equipe técnica chefiada por um “Syndico”. A “administração provisória” e sua equipe teria residência em Pirenópolis e seria responsável ainda pela construção de ferrovias e estradas. A proposta de Curado e Mendonça, assim como as sugestões de aditivos financeiros para projetos de ferrovias dos deputados Lauro Muller, Christiano Cruz, Costa Rodrigues e Luiz Domingues foram apresentadas e debatidas no Congresso. Nada foi objetivamente decidido pelos parlamentares naquele momento.
Em 1º de junho de 1894, o ministro de Industria, Viação e Obras Públicas, Antônio Olinto Pires, por decisão direta de Floriano Peixoto, enviou instruções a Luiz Cruls determinando a escolha, dentro do quadrilátero já definido, do sítio específico onde seria edificada a nova capital, considerando os seguintes aspectos: 1) A salubridade do clima; 2) a qualidade das águas, sua abundância e facilidade para o abastecimento da futura capital; 3) a topografia e a natureza do terreno, de modo a prestar-se o melhor possível ao desenvolvimento de uma grande cidade, sob o ponto de vista das edificações e das comunicações urbanas. A instrução determinava ainda que, escolhido o sítio, seria organizada, imediatamente, uma estação meteorológica no local, devidamente equipada, destinada a registrar observações diárias e regulares para o completo conhecimento e compreensão climatológica do local.
Para cumprir a tarefa, a Comissão foi subdivida em cinco grupos que marchariam em direções distintas, sob as seguintes chefias: Henrique Morize, Hastimphilo de Moura, Celestino Alves Bastos, Alípio Gama e Luiz Cruls. Ao final, cada grupo apresentou seu relatório sobre a região percorrida. Aqui merece destaque a famosa carta de Auguste Glaziou dirigida a Cruls, que descreveu com preciosidade o lugar onde hoje é o Plano Piloto: “O aspecto das regiões até hoje percorridas é de um país ligeiramente ondulado: lembra-me Anju, a Normandia e mais ainda a Bretanha, exceto, todavia a direção Oeste onde campeia a Serra dos Pirineus, tão pitoresca. A leste, estende-se o belo e grandioso vale que vai prolongando-se até os pequenos
montes do Rio Paranuá… Agora que tenho a dita de viver o clima ameno do Planalto, cada dia o acho melhor pela temperatura perfeitamente constante, a leveza e pureza do ar: aí tudo é amável e calmo… Quanto à minha opinião, formada desde já, é com a mais sólida e franca convicção que vos declaro que é perfeita a salubridade desta vasta planície, que não conheço no Brasil Central lugar algum que se lhe possa comparar em bondade. A esta qualidade primordial do Planalto convém acrescentar a abundância dos mananciais d’água pura, dos rios caudalosos cujas águas podem chegar facilmente às extensas colinas que nas proximidades, se vão elevando com declives suavíssimos”.
Prudente de Morais, primeiro presidente civil da República, tentaria desmilitarizar o governo, pacificar a desordem federativa quase em convulsão. Receberia os relatórios parciais da Comissão Cruls, com o texto poético e profético de Glaziou. Mas, trataria também de tentar jogar no esquecimento a ideia da
nova capital no Planalto Central do Brasil.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Material cedido ao Correio