Em 1592, Caravaggio (1571-1610) era um pintor desconhecido de 20 anos de idade recém-chegado a Roma em busca de uma carreira na arte. Os primeiros anos na cidade foram difíceis: ele pulou de ateliê em ateliê e ganhava a vida vendendo reproduções baratas de suas pinturas. Um de seus biógrafos contemporâneos, Giulio Mancini (1558-1630), relatou em Considerações sobre a pintura que Caravaggio vendeu a preço de mercado obras que retratavam “um menino gritando porque foi mordido por um lagarto que segurava na mão, um menino descascando uma pera com uma faca e o retrato de um estalajadeiro que lhe dera hospedagem”. O menino com a pera é uma das cenas mais conhecidas de Caravaggio, e tem cerca de 10 cópias registradas. Agora, Gianni Papi — um dos maiores especialistas mundiais no artista — acredita ter descoberto o original da obra — o que faria dela a pintura mais antiga conhecida do mestre barroco.
Com 66 centímetros de altura e 51,5 de largura, a obra descoberta por Papi foi adquirida por um colecionador em 2024 em um leilão no norte da Europa. Na época, o quadro foi leiloado como uma suposta “cópia de Caravaggio”, e o comprador emprestou a pintura para estudos. Papi, então, submeteu o quadro a uma radiografia e a um estudo de refletografia, e concluiu que a obra provavelmente foi pintada pelo próprio Caravaggio. “Não excluo que a pintura possa ter sido pintada pelo mestre antes de sua chegada a Roma, e que ele a carregasse consigo como uma espécie de cartão de visita”, explicou o especialista ao jornal El País.
As dúvidas iniciais eram muitas: embora cerca de 60 telas tenham sido atribuídas a ele, Caravaggio assinou apenas uma delas, A Decapitação do Batista, e sempre surgem controvérsia quando uma possível nova pintura aparece. Para Papi, no entanto, a obra é um exemplar verdadeiro: “A qualidade de algumas das peças mais bem preservadas, como a camisa, as mãos e a natureza-morta [tema recorrente do artista], indicam um alto nível de habilidade e me deram esperança”, explica, destacando um elemento essencial que usou para estabelecer a autoria: uma forma escura que aparece na radiografia na parte inferior da tela, entre as mãos da criança e a fruta, chegando à camisa.” É fácil reconhecer na sombra escura um pequeno cão com o focinho voltado para cima, em direção ao rosto da criança, a boca entreaberta”, detalha Papi.
O estudioso explica que isso significa que a tela foi reutilizada, e que o cachorro “talvez fizesse parte de uma composição anterior”. “Pode ter sido o resultado da ideia inicial de Caravaggio, e evoca a imagem alegórica da Felicidade: o cachorro preto, Cornacchia , que o biógrafo do gênio, Giovanni Baglione (1563-1643), afirmou ser inseparável de Caravaggio”, explica ele. De acordo com as análises, Caravaggio utilizou a áre escurecida pintada anteriormente para criar os sombreados na camisa, mas elas parecem um pouco forçadas. “Agora entendemos por que essas mesmas áreas de sombra se repetem no restante das diferentes variações e qual é a origem delas”, argumenta Papi.
Outra versão autêntica, mas de feita posteriormente, está no Palácio de Hampton Court, na Inglaterra, como parte das coleções reais britânicas. Se confirmada a autoria da obra analisada por Papi, Caravaggio teria usado a imagem do menino com a pera para sobreviver, o que explicaria a existência de duas versões similares feitas por ele. Mesmo depois de tantos séculos, o mestre barroco segue cercado de mistérios.
Por Revista Plano B
Fonte Veja
Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images