Em agosto de 1961, a hoje extinta Alemanha Oriental iniciou a construção do Muro de Berlim, marco que materializou a divisão mundial da Guerra Fria. Naquela mesma semana, chegava às bancas americanas uma novidade da Marvel: a história em quadrinhos apresentava um peculiar grupo de heróis formado por quatro cientistas que participam de uma missão espacial perigosa. O argumento final para convencê-los a entrar nessa: “Os comunistas vão ganhar” caso não topem entrar na nave, diz um deles. A HQ refletia uma tensão da vida real: naquele momento, a corrida espacial era parte essencial da disputa entre Estados Unidos e União Soviética. A aventura dos cientistas na ficção não sai como esperado: atingida por raios cósmicos, a trupe adquire habilidades que preferia não ter. A mesma viagem volta à baila no filme Quarteto Fantástico: Primeiros Passos (The Fantastic Four: First Steps, Estados Unidos, 2025), já em cartaz nos cinemas.
Na nova adaptação da HQ, os heróis americanos não anseiam por derrotar soviéticos, mas, sim, adquirir conhecimento. Diante de uma ameaça intergaláctica, os Estados Unidos se aliam a todos os países do globo, em um esforço coletivo para tentar salvar o planeta. A virada ideológica diz respeito ao tempo no qual a trama está inserida. Não há mais Guerra Fria, mas outras mudanças feitas pelo diretor Matt Shakman conversam com os dias de hoje. Em tempos de afirmação feminina, Sue Storm, a Mulher Invisível interpretada por Vanessa Kirby, ganhou mais destaque na trama, enquanto o mulherengo Johnny, o Tocha Humana, papel de Joseph Quinn, gosta de paquerar, mas não flerta mais com um processo por assédio.
A adaptação do olhar à dinâmica das nações e ao comportamento humano é indissociável do universo dos super-heróis: mais que seres poderosos de figurinos esquisitos, eles refletem anseios humanos geralmente deflagrados por fissuras da sociedade (leia o quadro). Conforme o mundo muda, esses medos também se alteram, assim como os vilões que os representam. Nessa toada, os heróis se renovaram sem grandes percalços ao longo de décadas. Até que chegamos ao mundo da polarização e do extremismo político de hoje. Esse campo minado virou um pesadelo para os estúdios de Hollywood — que precisam desagradar o mínimo possível de pessoas para atraí-las ao cinema e, claro, lucrar. Devem, ainda, evitar o poder de retaliação do presidente americano Donald Trump e de seus eleitores, hostis com temas como a diversidade e a defesa de minorias.
Antes mesmo de estrear, Quarteto Fantástico já ganhava de radicais da direita nas redes sociais o selo de woke — termo atrelado a ideais progressistas. Para além das mudanças sutis nos personagens, a presença no elenco do chileno Pedro Pascal, um ávido defensor de pessoas transgêneros, interpretando o líder Reed Richards, o Senhor Fantástico, foi alvo da gritaria dos seguidores do republicano — Ebon Moss-Bachrach, na carcaça rochosa do Coisa, completa o grupo. Semanas antes da estreia de Quarteto, o filme Superman, da DC Comics, concorrente da Marvel, também foi tachado de woke — ou melhor, “Superwoke” — pelo canal de TV ultraconservador Fox News. O herói que cai nos Estados Unidos após a destruição de seu planeta é um imigrante, bradou o diretor James Gunn numa entrevista — a afirmação foi lida como uma alfinetada na política anti-imigração de Trump. Não é de hoje que Superman desafia o presidente. Em 2017, nos quadrinhos, o herói protegeu imigrantes ilegais contra um grupo de supremacistas brancos — na época, Trump havia acabado de anular uma lei criada por Barack Obama que protegia estrangeiros menores de idade de serem deportados. No filme em cartaz, há outro aceno antiautoritarismo: Superman não só protege a todos, independente de cor e origem, como defende um pequeno país pobre de uma nação vizinha armada até os dentes — uma clara alusão ao conflito entre Israel e Gaza. No caso de Superman, valeu a pena se posicionar: o filme passou dos 400 milhões de dólares em duas semanas em cartaz.
Ainda timidamente, a Marvel tenta deixar para trás o posto de isentona. Lançado em fevereiro, Capitão América: Admirável Mundo Novo, com Anthony Mackie, primeiro ator negro no papel do herói, foi um vexame — fugiu de temas quentes, como racismo, e exibiu um presidente anódino, o Hulk Vermelho (Harrison Ford). A bilheteria foi a pior da franquia e um desgosto para o histórico do personagem. No início de 1941, os Estados Unidos ainda não haviam entrado na Segunda Guerra, mas o Capitão América, então recém-criado pelos quadrinistas americanos e judeus Joe Simon e Jack Kirby, já lutava contra nazistas: na capa de sua primeira HQ, ele dá um belo soco em Adolf Hitler. O vilão, hoje mais que óbvio, na época ainda dividia opiniões — os criadores do Capitão América ganharam proteção policial contra ameaças de morte. Ao encarar o ditador nazista sem medo, a Marvel dominou o mercado de gibis na época, batendo 30 milhões de cópias vendidas por mês. Heróis com causa não são só necessários: eles também são muito lucrativos.
A liga dos engajados
Quatro momentos em que os heróis fizeram acenos políticos para crises da vida real
Antinazismo
Em 1941, o Capitão América surgiu como símbolo patriótico da Segunda Guerra. Na capa da primeira HQ, ele esmurra Hitler — o ditador também levou uns sopapos do Superman. Ambos os heróis, aliás, são criação de autores judeus americanos
Direitos civis
Em 1963, os X-Men refletiam a luta dos negros americanos por igualdade: a trupe de mutantes também buscava aceitação social. O diplomático professor Xavier foi inspirado em Martin Luther King Jr. e o tempestuoso Magneto, em Malcolm X
Guerra fria
Papel de Scarlett Johansson no cinema, a Viúva Negra é uma espiã treinada pelos russos, os quais aliciavam garotas órfãs para transformá-las em assassinas. De vilã, ela vira heroína ao se livrar do passado e ajudar os Vingadores
Por Revista Plano B
Fonte Veja
Foto: Marvel Studios/Disney Pictures/.