O Cerrado, conhecido como o “coração das águas do Brasil”, está perdendo fôlego. A vazão mínima de segurança das principais bacias caiu 27%, desde a década de 1970, e o bioma tem perdido o equivalente a 30 piscinas olímpicas de água por minuto — um volume que, em 24 horas, seria suficiente para abastecer todo o país por três dias e meio. As informações são do projeto Cerrado: O Elo Sagrado das Águas do Brasil.
Entre 2021 e 2025, a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) emitiu cerca de 800 autos de infração por uso irregular de recursos hídricos no Distrito Federal, principalmente na perfuração de poços subterrâneos. A poucos dias da COP30, que ocorrerá em Belém (PA), entre 10 e 21 de novembro, especialistas alertam que o bioma enfrenta crises hídricas que precisam ser discutidas com urgência.
O impacto do desmatamento, da agricultura intensiva e do crescimento urbano desordenado não se limita à perda da vegetação. O uso excessivo de água, aliado à falta de planejamento, compromete a recarga de rios e aquíferos, ameaça a produção de alimentos e acende um alerta para a segurança hídrica de milhões de brasileiros. No campo, produtores do DF buscam soluções sustentáveis para conciliar produtividade e preservação, mostrando que é possível produzir sem esgotar os recursos naturais.
Monoculturas
A substituição da vegetação nativa por monoculturas intensivas, como soja e pastagens, vem alterando silenciosamente o ciclo natural das águas no Cerrado. As plantas típicas do bioma, como o pequi, o buriti e o ipê, têm raízes que chegam a dezenas de metros de profundidade, funcionando como uma espécie de bomba natural. Elas captam a umidade do subsolo e a devolvem ao ar, num processo que mantém o solo úmido, alimenta lençóis freáticos e sustenta rios e nascentes, mesmo nos meses de seca. No entanto, quando essa vegetação é arrancada para dar lugar a lavouras e pastagens rasas, toda essa engrenagem hídrica se desregula.
O biólogo e doutor em Botânica pela UnB Marcelo Kuhlmann ressalta que, quando a vegetação é retirada, o solo perde a capacidade de infiltração, a água escoa superficialmente e as nascentes secam. “A perda de cobertura vegetal contribui para o aumento das temperaturas e a redução das chuvas, pois o Cerrado participa do ciclo de umidade que conecta o bioma à Amazônia por meio dos chamados ‘rios voadores'”, destacou. E o resultado disso é um círculo vicioso de seca e degradação: menos vegetação gera menos chuva e menos água disponível.
Segundo ele, o impacto não é local — é nacional. “A supressão da vegetação do Cerrado compromete diretamente a recarga dos aquíferos, pois o solo compactado pelas máquinas e pelo gado perde sua capacidade de absorver a água das chuvas. Isso reduz a infiltração e faz com que a água escoe rapidamente pela superfície, provocando erosão e assoreamento dos rios. O ‘coração das águas do Brasil’ está enfraquecendo, afetando bacias vitais como São Francisco, Paraná, Xingu, Tapajós e Pantanal”, alertou o pesquisador.
Sobre a COP30, Marcelo reforça a importância de discutir o Cerrado no evento. “É uma oportunidade de colocar o bioma no centro do debate climático. Grande parte das águas que sustentam a Amazônia nasce aqui, e proteger o Cerrado é essencial para qualquer solução efetiva diante da crise climática global.”
O diagnóstico é confirmado pela Secretaria do Meio Ambiente do Distrito Federal (Sema/DF), que reforça que a preservação das nascentes é essencial para garantir a resiliência hídrica do DF e a manutenção dos serviços ecossistêmicos que sustentam o equilíbrio ambiental e o bem-estar da população. Os levantamentos mostram que existem cerca de 6,2 mil nascentes mapeadas no DF.
Apesar da abundância aparente, a preservação dessas fontes depende de práticas rurais e urbanas responsáveis, como a recuperação de áreas degradadas, a manutenção de matas ciliares e a adoção de técnicas de manejo sustentável, que evitam o assoreamento e ajudam a garantir a qualidade e a disponibilidade da água.
Sustentabilidade
Em 2024, o setor agropecuário do DF se mostrou pujante, com Valor Bruto da Produção (VBP) de R$ 5,87 bilhões, segundo a Emater-DF. A pecuária responde por 37,2% do total, seguida das grandes culturas e da olericultura. Entre as cadeias mais relevantes, estão a soja, milho, morango, tomate, abacate e carne de aves.
Mas a produtividade cobra caro em termos de água, e os produtores estão buscando soluções sustentáveis. Segundo o engenheiro-agrônomo da Emater-DF Antonio Dantas, o uso racional da água na agricultura depende diretamente da tecnologia e do manejo adequado.
“Irrigar na hora certa, na quantidade certa, exige tecnologia — e alguns agricultores ainda não a utilizam. Depois da crise hídrica de 2017, temos incentivado, principalmente, os pequenos produtores a adotarem práticas mais eficientes. Os grandes, em geral, já utilizam. É uma necessidade: o agricultor precisa reduzir custos, e o gasto com irrigação, especialmente com energia elétrica, é muito alto. Por isso, é fundamental manejar bem o tempo e o volume de irrigação”, ressaltou.
A irrigação controlada é uma das estratégias mais eficazes para economizar água. O produtor rural e técnico agrícola Marcos Almeida adotou um sistema de irrigação por gotejamento no qual pequenas perfurações nas mangueiras liberam água diretamente na base das plantas. “A cada 30 centímetros, pinga uma gota bem no pé da planta. Assim, você coloca água exatamente onde precisa e ainda aproveita para colocar a nutrição junto, dissolvida na água. Isso racionaliza tudo”, explicou.
Ele também utiliza cobertura plástica no solo para conservar a umidade. “Um solo descoberto seca rápido — se você irrigar por 30 minutos, logo forma uma camada seca. Com a cobertura, essa água dura mais tempo. Além disso, o plástico evita o uso de herbicidas e reduz a necessidade de capina manual, que é cara e difícil, por falta de mão de obra.”
Marcos complementa que, para garantir o equilíbrio no uso de água e nutrientes, utiliza o sistema Haks de irrigação, que automatiza parte do processo. “Uso o sistema há quatro meses. Ele mostra a quantidade certa de água que deve ser aplicada em cada momento. Assim, você evita desperdício e consegue manter a planta sempre no ponto ideal de desenvolvimento. No fim das contas, a economia de energia e de insumos é enorme.”
A adoção de práticas sustentáveis tem mostrado resultados positivos para o produtor rural, tanto na economia de gastos quanto na produtividade. “Diminuindo o uso de defensivos e ajustando a irrigação, as plantas dão frutos maiores e mais saudáveis. No começo do ano, perdi umas 2 mil mudas de morango, mas as que vingaram produziram muito bem. O frio, à noite, ajudou, pois o morango gosta da diferença de temperatura entre dia e noite, a chamada inversão térmica”, explicou o produtor.
Além de economizar água, essas práticas reduzem custos. “Antes, eu gastava cerca de R$ 800 por mês de energia. Com irrigação por gotejamento e controle do tempo e quantidade de água, consegui reduzir quase 40% desse custo. Muita gente acha que sustentabilidade é gasto, mas, na prática, ela faz economizar”, ressaltou.
Desafios na preservação
Segundo o engenheiro-agrônomo da Emater-DF Antonio Dantas, ainda existem gargalos importantes na conservação das nascentes e na redução do impacto agrícola sobre os recursos hídricos. “Trabalhamos com a redução do uso de agrotóxicos e oferecemos capacitações para que os agricultores aprendam técnicas mais seguras. Mas muitos ainda aplicam adubos químicos sem análise prévia do solo ou consideração dos micro-organismos que o mantêm fértil, o que prejudica a sustentabilidade”, explicou.
Outro ponto central é a preservação e a recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs), atribuições institucionais do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), que incluem as margens de rios e nascentes. Essas áreas ajudam a manter a infiltração, evitar erosão e assoreamento dos cursos d’água e proteger a qualidade da água. Para enfrentar esses desafios, existem programas de recuperação em parceria com a Adasa, o Ministério do Meio Ambiente e organizações locais.
Um exemplo é o Programa Produtor de Água do Pipiripau, que incentiva agricultores a preservar nascentes e áreas de vegetação nativa. Participantes recebem pagamento por serviços ambientais para adotar práticas como reflorestamento, recuperação de áreas degradadas e construção de estruturas de conservação do solo e da água.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press