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Doença intestinal: nocaute na inflamação

 Crônicas, sistêmicas e associadas a alterações no sistema imunológico, as doenças inflamatórias intestinais...

 Crônicas, sistêmicas e associadas a alterações no sistema imunológico, as doenças inflamatórias intestinais (DIIs) impactam a qualidade de vida de 6,8 milhões de pessoas, sendo 212 mil delas, no Brasil. Apesar de debilitantes, duas das enfermidades mais comuns do grupo — doença de Crohn e a retocolite ulcerativa (RCU) — contam, agora, com tratamentos inovadores, que permitem o controle de sintomas, inflamações subjacentes e até remissão profunda. Um deles foi apresentado na Semana de Gastroenterologia da União Europeia, um dos principais eventos mundiais dedicados ao tema. Trata-se do guseclumabe, um anticorpo monoclonal que bloqueia a proteína interleucina-23 (IL-23) que, quando produzida em excesso, contribui para doenças autoimunes. 

As DIIs afetam o sistema imunológico, que passa a atacar o próprio corpo, começando pelo intestino e podendo se expandir para as articulações, pele e outros órgãos. Nesse contexto, os inibidores de IL-23 têm alcançado alta chance de eficácia, com respostas mais rápidas e duradouras, em especial nos casos moderados a graves. Estudos recentes patrocinados e conduzidos pela farmacêutica Johnson & Johnson indicam que pacientes tratados com tremfya subcutâneo (nome comercial do guseclumabe) alcançaram resultados clinicamente significativos. 

Além da remissão profunda — quando não há sinais clínicos nem marcadores detectáveis no organismo —, foi constatada melhora da mucosa intestinal, evidências histológicas e endoscópicas de recuperação e baixo índice de efeitos colaterais, com perfil de segurança positivo. Estima-se que, com o inibidor de IL-23, os pacientes possam ficar, em média, dois anos sem apresentar sintomas fortes. 

Biológicos

Se antes as terapias visavam apenas controlar os sintomas, hoje, com os medicamentos biológicos, o objetivo é atingir esse estágio remissivo, explica a pneumologista Tatiana Deschamps, diretora de assuntos médicos em imunologia da Johnson & Johnson Innovative Medicine para América Latina. “Isso significa que, em exames como endoscopia, colonoscopia, biópsia ou ultrassom, não há mais inflamação ativa, e o trato gastrointestinal parece normal. Esse é o objetivo atual dos tratamentos mais modernos”, afirma a médica. 

No Brasil, o guselcumabe foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em março, com opções de indução subcutânea e intravenosa para o tratamento de adultos com doença de Crohn com atividade moderada a grave. Desde abril, o medicamento está disponível para pacientes de planos de saúde. Para retocolite ulcerativa, também com atividade moderada a grave, o tremfya deve ser administrado inicialmente por via intravenosa, seguido por manutenção. Em 9 de outubro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publicou a Consulta Pública (CP) 162 para avaliar a incorporação de novas tecnologias — incluindo o guselcumabe — para o tratamento de retocolite ulcerativa na lista de cobertura dos planos de saúde.

Prevalência

Segundo especialistas, os casos de DIIs têm aumentado de forma significativa entre a população da América Latina. Dados divulgados pela revista The Lancet Regional Health – America mostram que, em 2012, a prevalência de doença de Crohn era estimada em 12,61 pacientes a cada 100 mil habitantes no Brasil. Em 2020, o índice saltou para 33,68. Em relação à retocolite ulcerativa, a prevalência, também em 2012, era de 15,77 a cada 100 mil habitantes. Oito anos depois, mais que triplicou, chegando a 56,53. 

“Muitos pesquisadores relacionam esse aumento à ‘ocidentalização’ dos hábitos e culturas. Já se observou, por exemplo, que migrantes da Ásia ou da América Latina que se mudam para os Estados Unidos passam a ter mais casos de Crohn e retocolite ulcerativa”, aponta o gastroenterologista Fabián Juliao Baños, presidente da Organização Panamericana de Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa (Pancco). Entre os hábitos listados pelo médico estão o consumo de alimentos ultraprocessados e álcool, a diminuição de exercícios físicos e a falta de sono de qualidade, além do tabagismo e da poluição ambiental.  

Segundo o gastroenterologista, há um componente genético que explica cerca de 15% a 20% dos casos, mas o restante — cerca de 80% — está ligado a fatores ambientais, como alimentação e mudanças na microbiota intestinal. “Observou-se que pessoas com predisposição genética que mantêm hábitos saudáveis reduzem o risco de desenvolver as doenças em até 50%”, explica. 

Aceleração

Baños afirma que é estimado que, na Europa, uma em cada 100 pessoas poderá ter uma dessas enfermidades até 2030. “Na América Latina, estamos em uma fase epidemiológica chamada de ‘aceleração da incidência’, na qual os casos estão aumentando cada vez mais”, completa. De forma menos significativa, o maior acesso a exames também contribui para a elevação. 

As DIIs costumam se manifestar entre 20 anos e 40 anos, mas também há casos em crianças e idosos. Estudos indicam que, quanto mais cedo as enfermidades se desenvolverem, mais graves tendem a ser os sintomas. “De forma geral, a incidência aumenta justamente em uma fase de intensas interações sociais, universidade e relacionamentos. Por isso, o impacto na vida dos pacientes é enorme”, ressalta Tatiana Deschamps. Filhos de pais com a doença têm 5% de chance de desenvolvê-la.  

* A repórter viajou a convite da Johnson & Johnson Innovative Medicine para América Latina

Atenção aos sintomas

A maioria dos pacientes das doenças inflamatórias intestinais (DIIs) procura assistência médica quando se manifestam quatro sintomas principais: diarreia, sangramento, dor abdominal e perda de peso. O diagnóstico correto, no entanto, pode levar tempo. 

“Esse atraso tem duas causas. Uma delas é o próprio paciente, que não procura o médico e se automedica com antibióticos ou antiparasitário. Muitos dizem ‘sempre fui assim’, ‘sempre tive diarreia’, e se acostumam com os sintomas, sem buscar ajuda”, diz o gastroenterologista Fabián Juliao Baños, presidente da Organização Panamericana de Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa (Pancco). “Outro ponto é que alguns profissionais não suspeitam das doenças e pedem a colonoscopia duas ou três consultas depois, quando os sintomas persistem. “

Além desses dois fatores, há, ainda, o tempo de espera do sistema de saúde, no qual o acesso a um profissional especializado é limitado e os exames podem levar até um ano para serem realizados. “Se o diagnóstico não é feito cedo, o início do tratamento também é demorado. Assim, o paciente pode chegar em estado mais grave, necessitando de internação e até cirurgia, e apresentando úlceras, estreitamentos intestinais e, em alguns casos, risco de câncer”, alerta o especialista. 

Cirurgia

O gastroenterologista estima que 70% dos pacientes com retocolite ulcerativa apresentam formas leves ou moderadas, mas 30% evoluem rapidamente e podem precisar de cirurgia se o tratamento não for iniciado logo. No caso do Crohn, cerca de 40% dos casos são leves e 60% são severos, exigindo ação precoce e tratamento intensivo. Alguns permanecem com formas leves por toda a vida, dando margem maior para o controle da doença.

Apesar dos desafios, o cenário está mudando. “Estamos promovendo educação médica, com campanhas para informar os profissionais de saúde sobre a doença”, comenta Baños. “Hoje, o médico de atenção primária já reconhece o que é uma retocolite ulcerativa, compreendendo-a como um problema crônico. Devido à complexidade das DIIs, um atendimento multidisciplinar também é indispensável. Por isso a importância de desenvolver centros de excelência especializados.” 

Três perguntas para

Rogério Parra, médico coloproctologista e professor da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), onde dirige o Serviço de Doenças Inflamatórias Intestinais e coordena pesquisas clínicas em terapias avançadas

Quais os impactos das doenças inflamatórias intestinais para a qualidade de vida de seus pacientes?

Esses pacientes, normalmente, manifestam sintomas como diarreia, sangue nas fezes, emagrecimento e anemia. Alguns apresentam aftas e até lesões na região perianal, o que impacta muito a qualidade de vida, porque muitos demoram para procurar ajuda, muitas vezes por vergonha, achando que é algo comum. Imagine alguém em idade produtiva, de 20 a 50 anos, precisar interromper o trabalho ou uma entrevista para ir ao banheiro. Isso afeta o estudo, o emprego, os relacionamentos e a vida social. Mesmo em remissão, muitos ainda sentem fadiga, cansaço, ansiedade, depressão e medo de comer certos alimentos. Os pacientes precisam entender que é uma doença crônica, sem cura, mas controlável. A interrupção do tratamento faz com que a doença volte em mais de 80% dos casos. Então, a adesão ao tratamento e acompanhamento médico são essenciais para manter qualidade de vida.

Como avalia o cenário da doença e seus respectivos tratamentos no Brasil?

O Brasil é um país continental, com grandes diferenças regionais. Em estados como São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, temos bons serviços públicos e campanhas de conscientização. Mas no interior, o acesso aos exames, como a colonoscopia, ainda é muito limitado. No SUS, o tratamento para Crohn ainda é muito aquém do ideal, visto que há apenas uma classe de medicamentos disponível, enquanto na saúde privada os pacientes têm acesso a todas as terapias, inclusive as mais modernas, como os inibidores da interleucina 23. Essas novas moléculas já estão disponíveis no Brasil e têm mostrado alta eficácia e segurança, mas o SUS ainda não as incorporou. Falta atualização nos protocolos clínicos: o de retocolite, por exemplo, ficou quase 20 anos sem revisão. Então, mesmo com avanços, o acesso ainda é desigual.

Quais os riscos do uso indiscriminado de medicamentos?

A única medicação que deve ser evitada sempre que possível é o anti-inflamatório comum, como diclofenaco, cetoprofeno e ibuprofeno. Esses remédios aumentam o risco de úlcera e até de perfuração intestinal. Quem tem Doença de Crohn não pode fumar, porque o cigarro piora a evolução da doença. Já o corticoide pode ser usado apenas em crises, de forma controlada. O uso indiscriminado de medicamentos sem orientação médica pode agravar muito o quadro, causar complicações graves e até levar à cirurgia. (LM) 

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense

Foto: StockCake/Divulgação

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