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Problemas na saúde mental resistem a sucessivos governos

A alta demanda, em contraponto à baixa oferta de serviços adequados de acolhimento de...

A alta demanda, em contraponto à baixa oferta de serviços adequados de acolhimento de pacientes com transtornos mentais psiquiátricos na rede pública de saúde do Distrito Federal, acende o alerta entre especialistas. Na noite de 31 de agosto, um incêndio na Comunidade Terapêutica Liberte-se, no Paranoá, deixou cinco pessoas mortas (outra vítima faleceu em 23 de setembro) e 11 feridas. Sem extintor de incêndio e impedidos de fugir do quarto em que estavam trancados, alguns dos 46 internos viveram momentos de terror. 

O episódio chocou a população e, nesta reportagem, o Correio aponta problemas que se arrastam há 15 anos, como a falta de espaços de saúde adequados para o tratamento e cuidados dos usuários de álcool e de drogas. 

Levantamento publicado no site da Secretaria de Saúde (SES-DF) revela que, de janeiro a outubro de 2024, foram realizados 303,5 mil atendimentos relacionados à saúde mental, um aumento de 7,82% se comparado ao ano anterior, que registrou 281,5 mil.

A necessidade de espaços no DF para atender à crescente demanda, e que ofereçam os devidos tratamentos e cuidados a pessoas com transtornos psiquiátricos, vem de longa data e atravessa governos. Em maio de 2010, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) entrou com uma Ação Civil Pública na Justiça requerendo a implantação de 25 residências terapêuticas e 19 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no DF, no prazo de um ano. Em janeiro de 2016, a Justiça estendeu o prazo para até 2017. Até hoje a maioria dessas unidades não foi instalada. 

O psiquiatra Ricardo Lins, que coordenou a implantação da política de saúde mental no DF de 2007 a 2015, lembra que a última Conferência Distrital de Saúde Mental apontou, em 2010, a necessidade de instalação de 46 Caps no DF, tendo como base a população da época. Hoje são apernas 18 em funcionamento, segundo a Secretaria de Saúde, sendo sete deles voltados para o atendimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, “com equipe multiprofissional especializada para o tratamento, distribuídos entre diferentes modalidades, conforme o perfil populacional, a faixa etária atendida e a complexidade do cuidado requerido”, segundo a SES.

Em relação às residências terapêuticas — que são implantadas pelo poder público para assistir pessoas com transtornos mentais graves que foram internadas por longos períodos e não têm como retornar para a família — a SES informou que o DF conta com apenas duas unidades, sendo uma masculina e uma feminina, com 10 residentes em cada uma. Ambas estão localizadas na Região de Saúde Leste (que atende Paranoá, Itapoã, Lago Sul, São Sebastião, Jardim Botânico e Jardins Mangueiral).  

Inclusão social

Décio de Castro Alves, psicólogo e supervisor clínico institucional pela Fiocruz Brasília, avalia que as residências terapêuticas representam a grande ferramenta da inclusão social das pessoas que foram deixadas em internação de longa permanência. “Em conjunto com os Caps, preferencialmente os que funcionam 24 horas, constituem os principais dispositivos para garantir a desinstitucionalização dessas pessoas com uma oferta de atenção psicossocial integral no território de moradia”, destaca.

Pelos cálculos de Ricardo Lins, o DF precisaria de 25 residências terapêuticas em funcionamento para atender aos pacientes com transtornos mentais diversos e à população do sistema prisional. “A demanda da população em saúde mental se dá para o cuidado de pessoas em crise, em que os Caps devem acolher e cuidar. Atualmente, muitas pessoas com doenças crônicas chegam a ficar quase dois anos consecutivos internadas em diversas unidades de saúde, entrando e saindo de alta em poucos dias e várias vezes. Essas pessoas têm indicação de residências terapêuticas”, explica.

Ricardo lembra que “os critérios para internação em residências terapêuticas foram criados na década de 1990 e início dos anos 2000, mas o perfil de adoecimento em saúde mental mudou, e muitas famílias já não conseguem internações de longa duração há muitos anos. Mesmo assim, assistimos às necessidades de internações sem que a rede atual consiga dar resposta.”

O psiquiatra avalia que existe uma demanda reprimida de pessoas que têm sequelas por uso abusivo de substâncias, álcool, crack e outras drogas, e que precisam de equipamentos específicos, no caso Caps álcool e droga e unidades de acolhimento. “A unidade de acolhimento é transitória, de três meses, e necessária após a internação de 15 ou 30 dias no Caps”, explica. No DF existe apenas uma unidade de acolhimento, em Samambaia, segundo o psiquiatra.

Em nota, a SES-DF disse que executa um plano de qualificação e ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que prevê a criação de cinco Caps até 2026: no Recanto das Emas (iniciado) e em Ceilândia, em Taguatinga e Guará, e no Gama (iniciado). “Essas medidas buscam corrigir o deficit histórico e alinhar a rede local aos parâmetros recomendados pelo SUS, garantindo maior acesso e integralidade no cuidado em saúde mental”, aponta.

Particulares

“Tiraram uma parte de mim”. O desabafo é de Carlos Eduardo Ferrugem,  21 anos, irmão gêmeo da sexta vítima do incêndio na Comunidade Terapêutica Liberte-se. Luiz Gustavo Ferrugem morreu na última segunda-feira em decorrência do incêndio que atingiu a “clínica”, em 31 de agosto. 

As comunidades terapêuticas são empreendimentos particulares que devem oferecer tratamento a dependentes de drogas e de álcool focado na convivência entre as pessoas como principal ferramenta terapêutica para a recuperação e reinserção social. Após o incêndio, muitos internos e familiares queixaram-se ao Correio do tratamento recebido na casa, como trabalho forçado e violência física. Quatro pessoas (dois responsáveis pela comunidade e dois funcionários) chegaram a ser presas. 

Esse tipo de estabelecimento pode firmar convênios com o poder público para manter as atividades. Não é o caso da Liberte-se que, segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania do DF (Sejus), nunca solicitou registro junto ao Conselho de Política sobre Drogas, órgão vinculado à Secretaria de Justiça do DF. Atualmente, o GDF possui convênio com cinco comunidades terapêuticas que atendem pessoas encaminhadas pelo Programa Acolhe DF (veja quadro ao lado).

Fiscalização

Desde a tragédia ocorrida na Liberte-se, o MPDFT acionou diversos órgãos — como Polícia Civil e Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa (CLDF) — para acompanhar a responsabilização dos envolvidos no incêndio e cobrar medidas preventivas para que episódios semelhantes não voltem a acontecer.

Além disso, o MPDFT solicitou formalmente que a Sejus e o Conselho de Política sobre Drogas (Conen-DF) informem se há previsão para a criação de uma força-tarefa de fiscalização emergencial em todas as 39 comunidades terapêuticas em funcionamento no DF para verificar os documentos e, principalmente, as condições de tratamento e o respeito aos direitos humanos.

“Existe um crescimento descontrolado das implantações das comunidades terapêuticas (privadas), porque muitas ONGs ou entidades diversas propõem o cuidado para essas pessoas porque, muitas vezes, a população não se vê assistida pelo Estado”, ressalta o psiquiatra Ricardo Lins.

Entenda a rede

Centros de Atenção Psicossocial (Caps)

Compõem a Raps (Rede de Atenção Psicossocial), funcionam como clínicas públicas voltadas ao atendimento de pessoas com transtornos mentais moderados e graves, bem como aqueles com sofrimento psíquico decorrente do uso prejudicial de álcool e outras drogas. As equipes atuam de forma interdisciplinar, articulando-se com a rede de atenção e os recursos do território.

Unidades de Acolhimento

Atuam com o objetivo de dar suporte aos usuários  e familiares que passam pela internação em Caps álcool e outras drogas. O período máximo de internação

é de 90 dias

Residências Terapêuticas

São moradias implantadas pelo poder público e destinadas a pessoas com transtornos mentais graves que não precisam mais de internação, necessitam ser cuidados 24h, mas perderam o suporte familiar ou social.

Comunidades Terapêuticas

São casas particulares que podem se conveniar com o poder público. Oferecem apoio e tratamento a dependentes de drogas e álcool. Não são clínicas, mas locais de acolhimento voluntário em um ambiente de apoio, mas sem equipe multiprofissional. No Brasil, OnGs e igrejas oferecem esse modelo com cunho espiritual-religioso.

Comunidades conveniadas com o GDF

1. Instituto Desafio Jovem de Brasília – Planaltina (área rural)

2. CRDP – Centro de Reintegração Deus Proverá – Planaltina

3. Instituto Novo Tempo – Recanto das Emas

4. Instituto Abba Pai – Ceilândia

5. Instituto Despertai – Águas Lindas

Por Revista Plano B

Fonte Correio Braziliense

Foto: kleber/CB/D. A. Press

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