Partidos de esquerda, sindicatos e artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia estão por trás da convocação para hoje de uma série de manifestações, em todo o país, contra a PEC da Blindagem e a anistia aos golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Haverá atos em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador, Recife, Belém para pressionar os senadores a sepultarem a proposta de emenda à Constituição que veda ao STF a possibilidade de processar congressistas e, também, para evitar o avanço do projeto de lei que libera todos aqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito das penas que vêm lhes sendo impostas — uma delas, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que cumpre prisão domiciliar preventiva e foi condenado a 27 anos e três meses de prisão por querer manter-se no poder ilegalmente.
As duas iniciativas vêm sendo duramente desde que foram aprovadas na Câmara, na semana passada. Isso porque formou-se o consenso, inclusive, dentro do Parlamento, de que a PEC é algo que interessa apenas àqueles parlamentares que estão na mira do STF por irregularidades na destinação de recursos para emendas, assim como o PL é pauta apenas do bolsonarismo, inconformado com a condenação do ex-presidente pela Primeira Turma do Supremo — afinal, o principal cabo eleitoral da extrema-direita está definitivamente afastado de qualquer tratativa voltada para as eleições de 2026, sobretudo a partir do momento que passar ao regime fechado de prisão.
“Blindagens excessivas acabam enfraquecendo a confiança social e reduzem a fiscalização do poder público. Isso dialoga diretamente com a proposta de anistia, ambas no mesmo sentido de diminuir a responsabilização”, adverte o advogado Roberto Parentoni, especialista em direito processual penal da Universidade Mackenzie.
Desigualdade
“A PEC tenta impedir o processo, inclusive, em casos de crimes graves. Por exemplo: um deputado precisaria de autorização para ser preso, mesmo em flagrante, o que nenhuma outra autoridade no Brasil precisa. É uma desigualdade dentro das próprias prerrogativas já existentes”, disse o juiz do Tribunal de Justiça do Amazonas e criminologista Luís Carlos Valois, acrescentando que a proposta “viola o princípio da igualdade” ao exigir autorização parlamentar até mesmo para prisões em flagrante.
Mas nem mesmo o fato de a PEC ter sido aprovada folgadamente nos dois turnos de votação da Câmara — 353 x 134 no primeiro e 344 x 133, no segundo; destaques que buscavam alterar pontos do texto, como a exclusão do foro privilegiado, foram rejeitados — faz com que congressistas queiram colocar suas digitais na matéria. Sobretudo no Senado, onde está agora tramitando. Relator na Casa, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) adiantou o tratamento que dará à matéria.
“O relatório demonstrará tecnicamente os enormes prejuízos (da proposta)”, frisou.
Até mesmo parlamentares governistas externaram repúdio à PEC. A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) disse que a medida será recebida “com horror” pela sociedade, enquanto Cleitinho Azevedo (Republicanos-MG) classificou-a como um “murro na cara da população”. O senador Omar Aziz (PSD-AM) se uniu às críticas: “Nenhum cidadão brasileiro sem mandato tem tantas prerrogativas quanto nós. Isso é uma distorção enorme”, disse ao Correio.
O relator da PEC na Câmara, deputado Claudio Cajado (PP-BA), tentou defender a PEC. “Isso aqui não é uma licença para abusos do exercício do mandato. É um escudo protetivo da defesa do parlamentar, da soberania do voto e, acima de tudo, do respeito à Câmara dos Deputados e ao Senado”, afirmou. A deputada Bia Kicis (PL-DF) defendeu a proposta afirmando que “quem não quer que as prerrogativas sejam garantidas são aqueles que têm outros tipos de garantias, que não podem ser escritas na Constituição” — disse, em crítica velada aos ministros do STF.
Houve espaço, também, para o arrependimento em ter ficado ao lado da proposta — tal como Silvye Alves (União-GO) e Pedro Campos (PSB-PE). “Fui covarde”, admitiu Silvye.
Porém, travar o andamento da proposta de emenda constitucional no Senado não é tarefa simples. Apesar de o senador Otto Alencar (PSD-BA), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ter afirmado que submeterá a matéria ao trâmite normal e que não vê maneira de avançar, a rejeição pura e simples tem o condão de colocar os integrantes das duas Casas do Congresso em confronto.
A rejeição ou o arquivamento causariam mal-estar e a aprovação de um texto alterado o devolveria aos deputados, que poderiam restaurar a versão original e aprová-la. A expectativa, agora, é em torno de uma negociação sobre o que fazer com a PEC.
Matérias sem amparo
Um dia após a aprovação da PEC da Blindagem, a Câmara aprovou urgência para o PL 2162/23, que prevê redução de penas a participantes de manifestações golpistas, entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, incluindo os condenados pelos ataques do 8 de Janeiro. Passou por 311 x 163. Mais uma matéria sem conexão com o conjunto da sociedade, como demonstram pesquisas de opinião. A mais recente, do Datafolha, divulgada em 13 de setembro, mostra que 54% dos brasileiros se opõem ao projeto, enquanto 39% são favoráveis.
Inicialmente tratado como “anistia ampla, geral e irrestrita”, o PL passou a chamar-se “da Dosimetria”. De acordo com o relator, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), a proposta não concederá perdão integral, mas permitirá redução das penas, preservando as condenações determinadas pelo Supremo Tribunal Federal — inclusive a do ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão.
“Ninguém que participou do planejamento, financiamento ou depredação deixará de ser condenado, mas poderá ter redução de pena”, afirmou Paulinho, em vídeo que circula nas redes sociais.
Wilson Pedroso, consultor e executivo eleitoral, avalia que a escolha do deputado para relatar o PL foi estratégica. “A indicação não é apenas pragmatismo, é sinalização política. Paulinho é experiente, sabe negociar, não assusta nem a direita nem o STF. (O presidente da Câmara) Hugo Motta (Republicanos-PB) acerta ao colocá-lo na relatoria: protege o processo do desgaste, transmite moderação e garante que a pauta avance sem provocar choque institucional”, avalia.
Para Pedroso, o caminho está traçado: “O espaço político para uma anistia ampla morreu. Hoje, é inviável incluir Bolsonaro e os articuladores do 8 de Janeiro sem abrir crise institucional”, observa.
No Senado, analistas avaliam que dificilmente o texto será aprovado com redução de penas mais moderadas.
Benefício próprio
Outra matéria que nada tem a ver com as reivindicações populares é o PLP 177/23, que aumenta de 513 para 531 o número de deputados federais a partir de 2026. A justificativa é adequar a representação à população dos estados. Críticos, no entanto, apontam que a medida amplia despesas em um momento em que pautas importantes seguem paradas.
O Senado, por sua vez, aprovou (50 x 24) o PLP 192/23, relatado por Weverton Rocha (PDT-MA), que altera o prazo de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. O texto unifica em oito anos o período de impedimento, com limite de 12 em caso de múltiplas condenações. A principal mudança está no início da contagem: atualmente, os oito anos começam depois do fim do mandato, podendo ultrapassar 15 anos. Pelo novo texto, passam a contar da condenação, renúncia, decisão de perda de mandato ou eleição com abuso. A proposta segue para sanção presidencial e pode beneficiar políticos já condenados, entre eles Bolsonaro.
Deputadas da base governista ouvidas pelo Correio criticaram aquilo que consideram uma inversão de prioridades. Talíria Petrone (PSol-RJ) afirmou que “enquanto se discute blindagem e anistia, a Câmara ignora agendas que beneficiam 60 milhões de brasileiros, como a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil.” Maria do Rosário (PT-RS) considera que esses mesmos dois temas reforçam o distanciamento em relação à população.
“A anistia seria uma tragédia para a democracia, porque simboliza que quem tentou o golpe poderia tentar de novo”, sintetiza.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Fotográfo/Agência Brasil