Nascido na Estônia, pequeno país báltico ocupado pelas forças soviéticas durante a Segunda Guerra, o compositor Arvo Pärt acostumou-se ao silêncio desde cedo — tanto ao explorá-lo de forma magnífica em suas criações quanto ao sofrer o pior dos silenciamentos, a censura. Com um pé no serialismo, vertente da música erudita tida como “decadente” pela ditadura comunista de Stalin, e outro na religião, um pecado maior ainda aos olhos dos poderosos, ele resistiu o quanto pode, mas entrou em colapso após ter uma de suas obras, Credo, banida pelas autoridades em 1968. Daí em diante, até meados dos anos 1970, Pärt entrou em bloqueio criativo e cogitou em deixar de compor. Felizmente para os ouvidos do mundo, ele recobrou a fé na vida e na música ao passar por uma epifania: certo dia, escutou uma gravação de canto gregoriano — e foi como ouvir a voz de Deus. “A música era tão simples, tão límpida e tão lúcida. De repente, me dei conta que aquilo era a verdade”, explicou. Pärt, então, não só retomou as atividades: com suas referências modernas, adaptou a sonoridade antiga e reconhecível da música sacra e chegou ao próprio método de composição, enfurecendo de vez o regime soviético e entrando para a história da música erudita.
O compositor chega aos 90 anos em setembro já aposentado — mas não menos adorado. Do Royal Albert Hall, em Londres, ao Carnegie Hall, de Nova York, suas composições ecoarão pelo mundo ao longo de 2025. As homenagens dão a devida dimensão a um artista extraordinário, cuja vida de resistência se confunde com as lutas pela liberdade no século XX — que é um dos maiores de seus ofícios vivos (veja abaixo). Não bastassem essas singularidades, Pärt consegue uma façanha ainda maior: é um raríssimo compositor contemporâneo pop, que disputa palmo a palmo com o americano John Williams, conhecido por trilhas sonoras de sucessos do cinema como Star Wars, o título de mais apresentado em salas de concerto ao redor do mundo (ganhou dele em 2022 e ficou em segundo em 2023 e 2024, de acordo com o levantamento anual do portal especializado Bachtrack).
O que diferencia Pärt de Williams ou de pares como John Adams e Philip Glass é a profunda ligação de sua música com a religião. De modo curioso, até os 35 anos ele seguia — na vida e em suas composições — uma linha perfeitamente secular. O primeiro indício de uma guinada mística veio na forma do dodecafonismo do Credo, que equilibra doze notas de maneira sistemática e é sua primeira obra de temática cristã. Para os soviéticos, a peça era desarmoniosa, confusa e agredia os ouvidos — em outras palavras, insubordinada. Bastou uma apresentação para a obra ser banida. Pouco depois, Pärt foi entrevistado por uma rádio local e listou suas influências: Tchaikovsky, Mozart, Schubert, Bach — e Jesus Cristo. O trecho da conversa nunca foi ao ar.
Após superar esse trauma com a descoberta do canto gregoriano, ele aprofundou seus estudos no gênero, além do cantochão e de outras raízes da música ocidental. Assim nasceu sua assinatura musical, em 1976: o estilo que ele batizou de tintinnabuli, nomeado em homenagem aos sinos eclesiásticos. A técnica vai na contramão do cerebral serialismo e abraça uma economia musical franciscana. Em cada composição de Pärt, há apenas duas linhas: uma melódica e uma harmônica, que se limita a três notas de uma escala apenas. Para descrevê-las ao público, ele dispensa a teoria musical: “Uma linha são meus pecados. A outra é o perdão”. O som resultante não é sentimental nem catártico como o barroco de Bach, mas transcendental, sereno e surpreendentemente acessível. Por causa dele, Pärt foi expulso do sindicato de compositores da Estônia em 1979 e, no ano seguinte, se exilou na Alemanha, onde logo encontrou público fiel.
Desde então, inspirou músicos eruditos e artistas pop, como PJ Harvey, Radiohead, Nick Cave e Björk. O alcance de seu trabalho afasta a ideia de que exista nele caráter de pregação. Pärt nunca escreveu obras litúrgicas nem se comprometeu com uma vertente da fé. Convertido desde os anos 1970 em católico ortodoxo, recebeu em 2017 o Prêmio Ratzinger — o Nobel da teologia — do papa Francisco. O regime soviético tentou calar Pärt, mas se esqueceu de um ensinamento de Santo Agostinho: onde há silêncio, há Deus. Sob a repressão, forjou-se um mensageiro divino — e atemporal.
Magos contemporâneos
Além de Arvo Pärt, outros três compositores eruditos vivos que inovaram a música
John Williams
Mais famoso compositor em atividade, o americano de 93 anos domina o épico e criou trilhas de sagas como Star Wars, Indiana Jones e Jurassic Park. Seu repertório foi o mais apresentado no gênero mundialmente em 2023 e 2024
John Adams
O também americano Adams, de 78 anos, é ponto de encontro entre o minimalismo e a catarse. Ficou célebre por óperas que abordam acontecimentos políticos do século XX, como Nixon na China (1987) e A Morte de Klinghoffer (1991)
Philip Glass
Pai do minimalismo, Glass, de 88 anos e igualmente americano, inspirou Adams e mais talentos com trabalhos que hipnotizam o ouvinte por meio de estruturas repetitivas. Um bom exemplo pop é a trilha de O Mistério de Candyman (1992)
Por Revista Plano B
Fonte Agência Brasília
Foto: Birgit Püve/the Washington Post/Getty Images







