Tudo começou com um diagnóstico. Ou melhor, com a notícia de que algo no corpo pedia atenção. Isabel Costa, de 28 anos; e Bárbara Almeida, de 29, receberam, em momentos diferentes da vida, a confirmação da Síndrome de Li-Fraumeni (LFS), uma predisposição hereditária ao câncer. As pessoas com essa característica têm um risco maior do que outras pessoas para o desenvolvimento da doença.
A síndrome de Li-Fraumeni é considerada uma condição rara em boa parte do mundo. No entanto, no Brasil, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, uma mutação genética específica fez com que a doença se tornasse mais comum por aqui do que em qualquer outro país. Segundo a médica geneticista Maria Isabel Achatz, do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, essa mutação está presente em cerca de 0,3% da população dessas regiões, um índice considerado elevado. No Distrito Federal, esse percentual tende a ser menor.
Isabel tinha apenas 20 anos quando percebeu, após um ensaio fotográfico, que algo estava diferente em seu corpo. O diagnóstico de câncer de mama veio de forma abrupta e, como ela define, desumana. “Marquei uma consulta com um mastologista, que me diagnosticou de forma desumana com câncer de mama”. Então, ela procurou outro especialista, que recomendou um teste genético.
Já Bárbara descobriu a mutação após o diagnóstico de um tio com a síndrome. Como a alteração é hereditária, ela conta que decidiu fazer o teste, que deu positivo. Em seguida, a decisão por uma mastectomia preventiva, aos 25 anos, veio quase como um reflexo. “Fui bastante prática: entendi que precisava realizar os exames necessários e decidi, o quanto antes, pela mastectomia preventiva”, conta.
Ambas passaram a viver uma rotina de exames, consultas e decisões difíceis. “Pessoas que têm esse tipo de diagnóstico, têm indicação para realizar rastreamento semestral”, explica a médica geneticista.”Caso haja algum tumor em desenvolvimento, ele pode ser diagnosticado precocemente e, com isso, ter maiores chances de ser removido cirurgicamente, sem necessidade de nenhum tratamento adicional, ou com o mínimo possível de intervenções como quimioterapia ou radioterapia”, ressalta ela.
No entanto, Isabel lembra que o teste genético tinha custos muito elevados quando recebeu o diagnóstico. “Lembro que quando fui diagnosticada, era muito caro, totalmente inacessível. Na época, colhi meu material genético e enviamos para um laboratório fora do país. Paguei o equivalente a uns U$ 700 dólares. No Brasil, custava mais de R$15 mil reais, às vezes R$ 20 mil”, afirma. No entanto, ela também ressalta que, atualmente, os planos têm indicação de cobrir esse custo quando há indicação médica para tanto.
Sem resposta
Curiosamente, os elefantes são aliados da causa. No meio científico, eles são estudados em busca de pistas para uma possível cura, e se tornaram símbolo da Associação Internacional da Síndrome de Li-Fraumeni (LFS).
Enquanto humanos possuem apenas duas cópias do gene p53, responsável por impedir o crescimento de tumores, os elefantes possuem pelo menos 40 cópias desse gene em seu organismo. Pessoas diagnosticadas com Li-Fraumeni, tem pelo menos uma dessas cópias danificada ou ausente.
Apesar dos avanços, a medicina ainda caminha em busca de respostas concretas. “Até o momento, não existe nenhum tratamento capaz de reverter ou eliminar a variante patogênica ou mutação no gene TP53. O acompanhamento precoce ainda é a melhor forma de proteger essas pessoas”, afirma a geneticista Maria Isabel.
Além disso, a especialista reforça que o acompanhamento genético precisa ser conduzido com cuidado e continuidade. E disso, Isabel e Bárbara sabem. Ambas relatam o choque da descoberta, a dificuldade de compreensão dos familiares, a insensibilidade de alguns médicos que passaram, e o peso emocional de viver em constante alerta. “Alguns profissionais ainda tratam a síndrome como algo que deve ser escondido. Já ouvi uma médica dizendo que uma mãe não devia contar à filha que ela tem LFS”, desabafa Isabel.
Refúgio
Foi justamente esse silêncio ao redor do tema que levou Bárbara a procurar Isabel. Prestes a passar por uma mastectomia bilateral em 2022, ela sentia que precisava conversar com alguém que já tivesse passado por aquilo. Descobriu o perfil de Isabel pelas redes sociais, mandou uma mensagem e propôs uma conversa. E foi aí que uma amizade nasceu.
“Em 2022, me mudei para Europa, comecei um mestrado e nós nos mantivemos web-migas. A partir desse momento, comecei a participar de alguns trabalhos da Li-Fraumeni Syndrome Association com ela”, conta Bárbara.
As duas passaram a atuar como voluntárias na Li-Fraumeni Syndrome Association, organização internacional dedicada a apoiar pacientes com a síndrome. Juntas, traduziram para o português um livro educativo voltado para crianças, produzido originalmente nos Estados Unidos, que explica o que é a síndrome e a importância dos exames de acompanhamento de forma didática e acessível.
Elas também passaram a participar de encontros e workshops internacionais promovidos pela associação. Em 2023, representaram o Brasil em eventos realizados em Paris e Nova York. E a próxima parada está marcada: em agosto, embarcam juntas para Boston, onde ocorrerá um novo congresso global da LFSA.
“Uma parte muito importante da minha troca com a Bel foi isso mesmo: a gente lidou, e ainda lida, com a insensibilidade de vários médicos. E, junto disso, tem o tabu entre os próprios pacientes. No fim das contas, muitas vezes, só temos uma à outra pra conversar, pra desabafar. E é bom saber que a outra entende exatamente o que a gente sente”, desabafa Bárbara.
Rede de apoio
Em 2022, Isabel Costa participou de um encontro da Li-Fraumeni Syndrome Association (LFSA) em Boston e foi convidada a representar o Programa de Jovens na América Latina. Desde então, passou a atuar como voluntária e, junto a Bárbara, administra a atuação da associação na região. “Falar sobre síndromes genéticas e câncer sempre foi um tabu, e ainda é, em certa medida. A associação me apresentou um novo mundo”, conta. A LFSA conecta pacientes, promove estudos científicos, atua com advocacy e defende a ciência como forma de transformar a vida de quem vive com a síndrome. Isabel e Bárbara também são voluntárias e administram, juntas, a LFSA na América Latina, para auxiliar e orientar pessoas que estão passando pelo mesmo que elas passaram. “Quando recebi o diagnóstico, em 2017, me sentia muito sozinha. Faltava representatividade. Pouco se falava da Síndrome aqui no Brasil. Hoje tenho amigos que levo para a vida, a Bárbara é uma delas”, conta Isabel. Para mais informações, acesse: www.lfsassociation.org ou a conta do perfil em português, administrado pelas jovens: www.instagram.com/lfsabrasil.
Dificuldades
Além da rotina de exames e consultas, quem vive com a mutação no gene TP53 precisa lidar com restrições e decisões difíceis:
» Não poder doar sangue ou órgãos: por segurança, pessoas com a síndrome são impedidas de fazer doações;
» 50% de chance de herança genética: se um dos pais possui a mutação, há 50% de chance de transmiti-la aos filhos;
» FIV como alternativa segura: a fertilização in vitro com diagnóstico genético pré-implantacional pode ajudar a evitar a transmissão da mutação;
» Planos de saúde ainda negam exames: muitos pacientes enfrentam resistência para conseguir exames básicos de rastreio, mesmo com laudo genético.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Acervo pessoal