“Vejo o grafite como uma tomada de responsabilidade pela cidade, então, estou sempre pensando em como quero que nosso ambiente seja: plural, de respeito às diferenças, de imaginação, de diversão, de expressão livre, para além da norma. Aprendi que as regras do jogo somos nós que fazemos, como cidadãos, portanto, a parte estética da cidade — e como as pessoas podem usufruir dela — entra nessa escolha também”, diz a grafiteira, que participou de dezenas de eventos e festivais e recebeu os prêmios FAC Brasília, FAC Cultura Hip Hop e Citadinas de Grafite.
Seu trabalho foca na representação de mulheres livres e poderosas, como cientistas, artistas e pessoas fora dos padrões de beleza. “É uma forma de oferecer conforto emocional àquelas que habitam o espaço público”, comenta. Também retrata elementos da fauna e flora brasileiras, realismo fantástico e abstrações, convidando o público a sonhar, construir novas realidades e enxergar o grafite como ferramenta de denúncia e reconstrução simbólica. Iasmim tem obras espalhadas por Piracicaba (SP), Goiânia (GO) e Alto Paraíso (GO).
Em 2016, a grafiteira fundou a Trupe S.A. Crew, grupo de arte urbana formado por artistas de Planaltina. “Aqui (Planaltina), temos um senso de união muito grande, creio que por sermos um pouco isolados do restante do DF devido a distância. A cena cultural é muito rica e plural, seja na música, nas artes visuais, seja no teatro, na cultura popular. Então, muitos de nós somos motivados a fazer grafite em prol da comunidade e não tanto com vistas a um sucesso individual. Queremos crescer juntos”, destaca a artista, acrescentando que os murais da cidade costumam ser recebidos com carinho pelos moradores.
Habituada a pintar grandes murais, Iasmim tem seu maior grafite, com oito metros de altura, exposto nas paredes do Complexo Cultural de Planaltina. “A oportunidade de pintar em grandes formatos é um diferencial, pois é uma forma mais acessível, financeira e logisticamente, de fazer e ver sua arte, em comparação a outras mídias mais tradicionais, como a pintura a óleo”, comenta.
Para a artista, o grafite também é uma forma de se comunicar com o público sem precisar passar pelas barreiras da curadoria ou dos espaços tradicionais de arte. “Afinal, para grafitar, você só precisa de uma chancela: a da pessoa que cede o muro”, conclui.
Contraste proposital
Para Travis Bomb, 35, o grafite representa um manifesto visual de resistência, identidade e crítica social. Morador de Taguatinga, ele está envolvido com o universo das artes desde a infância e encontrou no hip-hop o caminho para potencializar o seu talento. “Foi na escola que me apaixonei pelo hip-hop e tive meu primeiro contato com o grafite, que se tornou uma extensão da minha trajetória. Desde então, mergulhei nesse mundo e nunca mais saí”, conta.
Sua arte é marcada por um contraste proposital: Travis mistura referências visuais do Renascimento — símbolo da elite e da cultura europeia — com elementos da periferia, do consumo digital e da vida urbana. “Não é homenagem, é sequestro. Eu me aproprio dessa estética para inserir tudo o que historicamente foi excluído dela”, afirma. O resultado são obras que quebram com a lógica eurocêntrica e incomodam ao propor novas narrativas sobre o sagrado, o belo e o poder.
O grafiteiro define seu estilo como um “confronto”, uma disputa simbólica pelos espaços da memória e da representatividade. A proposta de subversão silenciosa — que usa os próprios códigos da chamada “alta cultura” para questioná-la — torna seu grafite algo além da estética.
“Minhas obras querem ser incômodas, sedutoras e inclassificáveis. O atrito me interessa. O céu e a boca suja, o mármore e o meme, a cruz e o like. Tudo isso convive nas minhas criações”, explica, refletindo a tensão constante entre o sagrado e o profano que permeia a arte urbana contemporânea.
Com mais de 15 anos de experiência, 10 destes atuando profissionalmente, Travis Bomb acompanha de perto a transformação do grafite, especialmente com o avanço das redes sociais. “Hoje o grafite está em todos os lugares, até em lojas de luxo e consultórios. Virou uma ferramenta para criar identidade de marca”, observa.
A novidade, no entanto, pode esvaziar a essência do manifesto, que nasceu como forma de expressão da periferia. “Tem uma diferença entre o grafite que vai para o centro cobrir pichações e o que nasce na quebrada, com linguagem própria. Um é mercado, o outro é expressão”, argumenta.
Apesar das contradições que o mercado impõe, o artista segue firme no propósito de manter viva a autenticidade do grafite de raiz. Ele reconhece a complexidade do tema e defende que essa manifestação não seja completamente desvinculada da pichação, visto que “ambas caminham lado a lado na história das ruas”, pontua.
“O grafite puro é simples, é expressão. Mas para viver dele, muitos precisam se adaptar. O que não pode se perder é a consciência de onde tudo isso começou”, conclui. Em cada muro que pinta, Travis Bomb reafirma que a arte da periferia não é apenas decoração — é discurso, é luta, é memória.
“Sobrevivo da tinta”
O grafiteiro Carlos Washington Corrêa, conhecido como Carlos Astro, 47, é um dos nomes mais antigos da escrita urbana no DF, atuando desde 1990. Integrante do grupo 1V2M (Uma Vida, Dois Mundos), ele credita à cultura hip-hop e ao graffiti a sua saída do mundo do crime. “Quem me ressocializou foi a cultura urbana, através do grafite, da minha escrita literária e da minha força de vontade. Sobrevivo da tinta”, conta.
Astro começou como pichador, mas encontrou novos caminhos por meio de iniciativas como o projeto Picasso Não Pichava, da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF), que instruía pichadores a desenvolvem seu potencial até chegar ao grafite. Com os resultados positivos do programa, o grafiteiro se tornou um multiplicador desse propósito. Para ele, no entanto, grafite e pichação são a mesma coisa, sendo o primeiro a evolução do segundo. “A escrita urbana é uma só. A diferença é que hoje meu grafite tem forma, luz e contorno”, explica.
Na lateral de um atacadista em Ceilândia, o grupo 1V2M criou um painel de 380 metros que retrata marcos simbólicos da cidade, como a Feira Central, a Caixa D’Água, a Casa do Cantador e cenas do cotidiano local, como o dominó e os bares. “Ceilândia é uma galeria ao ar livre. É bom ver um pouco de beleza e acho que o grafite traz isso”, afirma Astro. O mural também visa gerar empatia com os moradores, reforçando a importância da comunidade na sustentação do comércio local.
Carlos Astro destaca que o grafite comercial, além de valorizar a cidade, oferece oportunidades para jovens em situação de vulnerabilidade. Ele mesmo utiliza uma lanchonete como espaço de acolhimento e orientação para novos artistas urbanos, visando transformar o local em um centro cultural. “Com o grafite comercial, você sai da violência, das drogas e da morte”, destaca o também escritor, que já lançou dois livros sobre as experiências que viveu no Complexo Penitenciário da Papuda.
A valorização do grafite também vem ganhando apoio institucional. O Comitê Permanente do Grafite do Distrito Federal (CPG), do qual Astro fez parte, firmou parcerias com diferentes secretarias, permitindo que os artistas urbanos atuem em espaços públicos, como metrôs, hospitais e capelas. As ações, segundo o grafiteiro não apenas embelezam a cidade, mas também reforçam o papel do grafite como ferramenta de inclusão e transformação social.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ed Alves CB/DA Press